O Testamento de Orfeu (Le Testament dOrphée, ou ne
me demandez pourquoi!) é a despedida de Jean Cocteau. É o seu
último filme, que ele oferece, particularmente, aos jovens, que sempre
o apoiaram, segundo ele próprio. A trama se encontra à altura
do seu gênio.
O Poeta (Jean Cocteau) viaja no tempo, vestido com trajes da época de
Luís XV. Ele procura pelo Professor, encontrando-se com ele em etapas
diferentes e aleatórias da sua vida: quando este tinha 13 anos de idade;
quando este era bebê, provocando um susto em sua mãe, que o deixa
cair ao chão, daí lhe provocando uma doença; já
idoso, em uma cadeira de rodas, quando deixa cair da sua mão uma caixa
que o poeta apanha e guarda, onde se encontra o seu importante invento; adulto,
quando conversa com o poeta, e este o lembra do seu encontro com ele quando
jovem. O poeta diz que está perdido no espaço-tempo e que é
difícil explicar o começo do infinito e até mesmo mais
difícil viver o infinito. A razão desta procura é
que o Professor inventara balas mais rápidas que a luz, que, segundo
o Poeta, seriam sua única salvação, sua única esperança
de voltar. Mas, para isto, o Professor teria que matá-lo primeiro, desdobrando
uma dobra do tempo. O Poeta diz que quer ser sua cobaia. Assim, O Professor
atira no Poeta, que cai ao chão e já retorna com os trajes da
época, ou seja, 1959. Despede-se do Professor e caminha por uma estrada,
onde cruza com um homem em uma fantasia de cavalo. O Poeta segue este homem-cavalo
e chega a um acampamento de ciganos, entre ruínas monolíticas.
Diante de uma jovem cigana, surge o retrato de Cégeste, um dos poetas
do filme Orfeu, também de Jean Cocteau. A cigana o observa
e o leva para outra cigana, uma cartomante, que o rasga. O Poeta pega, então,
os pedaços da foto, enquanto o homem-cavalo o observa. Ele lança
os pedaços da foto de Cégeste no mar e este surge do mar e oferece
uma flor ao Poeta, um hibisco. Eles caminham pela estrada. Encontram um jardim,
onde há um quadro coberto por um tecido. Depois, a tela se torna negra
e o poeta pinta um rosto, tendo a flor como modelo. Diante de uma observação
de Cégeste, o Poeta despedaça a flor e Cégeste a recolhe
em um vaso. No jardim, diante de um desafio de Cégeste, o Poeta reconstitui
a flor. Cégeste usa, por algum tempo, uma máscara de caveira.
No jardim, há pinturas de Jean Cocteau.
Cégeste diz ao Poeta que o está levando para a Deusa Pallas Athene
ou Minerva, e que se trata de uma ordem. Sugere ao Poeta que leve a flor para
ela, pois antes de ser deusa, Minerva é mulher. O Poeta diz que não
irá. Cégeste critica o Poeta, ou seja, o próprio Jean Cocteau,
por deixa-lo só na zona onde os vivos não estão vivos
e os mortos não estão mortos, a Princesa presa, e Herteubise que
se transformou nele. Que cuidado você teve!, exclama
ele. Trata-se de uma referência ao filme Orfeu, já
mencionado. Cégeste coloca a máscara da caveira no rosto do Poeta
e lhe diz para o obedecer. O Poeta retira a máscara e concorda em ir.
Atravessam uma porta e chegam em frente à uma mesa, onde estão
a Princesa e Heurtebise. O Poeta se desculpa.
A Princesa diz que ele terá que responder pelos seus atos perante o tribunal
e lhe pergunta se ele pleiteia ser culpado ou inocente. Heurtebise lhe diz que,
primeiro, ele é acusado de inocência. E, segundo, é acusado
de tentar atravessar repetidamente para o outro mundo. O Poeta se confessa culpado
em ambas as acusações. Ele também se diz acusado de crimes
que não cometeu e que tem tentado freqüentemente escalar esta
quarta parede na qual os homens inscrevem seu amor e os seus sonhos. Por
quê? lhe perguntam. Cansado deste mundo, talvez, e um ódio
pelos hábitos. Desafiando as regras e o espírito criativo,
que é a forma mais alta do espírito de contradição
da humanidade.
A Princesa (Princ.): se não estou enganada, você desobedeceu a
sua vocação. O Poeta (Poe.): o que as crianças, os heróis,
os artistas fazem sem isto? Heurtebise (Heur.): eles poderiam se retirar em
suas estrelas. Princ.: nós não estamos aqui para uma competição
de eloqüência. Princ.: ponha a flor aqui (sobre a mesa). O poeta
coloca a flor, ela desaparece. Princ.: onde você pegou esta flor? Poe.:
Cégeste me deu. Heur.: Cégeste, acredito, é o nome de um
templo na Sicília. Poe.: também é o nome de um poeta no
meu filme Orfeu. Antes disso, era o nome de um anjo em meu poema
Lange Heurtebise. Princ.: o que quer dizer com filme?
Poe.: um filme é uma fonte de materialização da consciência.
Um filme ressuscita ações inanimadas. Um filme permite à
pessoa fazer que a realidade pareça irreal. Princ.: o que você
quer dizer com irreal? Poe.: que as mentiras estão além
dos nossos pequenos limites. Heur.: alguém, você quer dizer, é
como um inválido, sem braços ou pernas, e sonha que está
correndo e gesticulando. Poe.: você deu uma excelente definição
de poeta. Princ.: o que você quer dizer com poeta? Poe.: criando
poemas, o poeta usa uma língua nem viva nem morta, falada por poucos
e entendida por poucos. Princ.: por que eles usam esta língua? Poe.:
para contatar o seu próprio tipo de mundo, onde o exibicionismo que compõe
o personagem é praticado pelos cegos. Heur. chama Cégeste (Ceg.).
Princ.: quem é você? Ceg.: o filho adotado deste homem. Meu verdadeiro
nome é Edouard. Sou um pintor. Princ.: ele diz que você é
um poeta e que se chama Cégeste. Heur.: Cégeste é
um apelido? Poe.: um pseudônimo, seria mais preciso. Heur.: seu francês
é mesmo um idioma sutil. Princ.: a alguns minutos terrestres atrás
você não recorreu a um idioma proibido neste mundo? Ceg.: sim,
num momento de raiva. Eu confesso. Princ.: não faça novamente.
Princ.: quem autorizou que você aparecesse a este homem com esta flor?
Ceg.: a flor estava morta. Ordenaram que eu a reavivasse. Princ.: pode nos mostrar
uma prova de seus poderes? Heur.: e não pense que um simples desaparecimento
nos convencerá. Poe.: desaparecer não é fácil. Heur.:
nada mais então que um fenômeno que faz um homem apaixonado se
apagar. Princ.: você se esqueceu. Heur.: sinto muito, estou nas nuvens.
Princ.: eu lhe aconselho que não brinque com esses assuntos, isso pode
alertar os homens sobre a vaidade interior deles. Heur.: não há
nenhum perigo disso ainda. Heur.: a você foi pedido uma prova de seus
poderes. Ceg.: eu concordo com este homem quando ele diz que o que pode ser
provado é inútil. Princ.: você ousa me ensinar? Este é
demais. Tomarei nota disto. Princ. para Poe.: você escreveu isto? Este
corpo que nos contém não nos conhece. Que nos habita e vive interiormente.
E este corpo vive dentro de outro corpo e forma o corpo da eternidade. Poe.:
reconheço que escrevi isto. Princ.: quem lhe contou estas coisas? Poe.:
que coisas? Princ.: o que você diz, nesta língua nem viva nem morta.
Poe.: ninguém. Princ.: você está mentindo! Poe.: eu lhe
garanto que, se você admitir, como eu fiz, que somos os penhores de uma
força desconhecida que vive dentro de nós, isto dita nossas ações
e nos compele a falar esta língua. Heur. para Princ.: ele pode ser deficiente
mental. Princ. para Heur.: intelectuais são menos que uma ameaça.
...............Heur. para Poe.: você é o caos escuro das cavernas,
florestas, pântanos, cheio de gigantes, bestas selvagens devorando-se
uns aos outros. Nada para ostentar. Princ.: onde você vive? Poe.: vivo
aqui, como convidado de um amigo. Princ.: o que você está me contando?
Onde nós estamos, lá não é aqui. Heur.:
nós não estamos em parte alguma. Poe.: não obstante, há
pouco passei por uma tapeçaria de mosaicos que projetei e com a qual
adornei a vila de que falei. Princ.: você pode ter passado por esta tapeçaria
e estes mosaicos, mas só porque nós colocamos estas coisas no
seu caminho. Onde você imagina que eles possam ter uma pequena conseqüência.
Chame a testemunha.
Aparece o Professor (Prof.). ................Prof.: eu estava na cama, dormindo.
Princ.: você está na cama, Prof. Você está dormindo.
Mas você não está sonhando conosco. Você está
em uma dessas dobras do tempo, que pesquisou em seu trabalho, pesquisa em que
você acredita, mas está mostrando desagrado por nosso modo de agir.
Você despertará e se lembrará de nós como figuras
dos seus sonhos. Você conhece este homem? Poe.: Prof., você tem
uma memória curta, embora seja verdadeira a desculpa de que você
está dormindo. Não basta apenas tirar a minha coroa de Luís
XV, capa, botas, peruca, e o chapéu de três pontas? Prof.: pelo
amor de Deus! sorrindo e o reconhecendo. Poe.: mas não posso te livrar
do dever. Você me advertiu que não podia me responsabilizar pelo
que aconteceria. Prof.: o que está fazendo aqui? Princ.: sob que circunstâncias
conheceu esse homem? ............Estava desesperado para completar minha pesquisa
de um método de ressurreição. Mas minha pesquisa não
teria sido possível sem esse homem talentoso, com estranhos poderes temporais,
dos quais eu era ignorante, não tivesse vagueado pelo contínuo,
viajado através do infinito, se perdido, trazendo a prova da minha descoberta,
do meu futuro para o meu presente. Eu a testei nele. .....................Princ.:
então você realizou o feito surpreendente de restabelecer um homem
perdido no tempo para sua própria época? Prof.: exatamente. Eu
o livrei da cova cavada por sua loucura. Poe.: só para me mergulhar em
outra, Prof., neste crepúsculo no qual vaguei, desde que deixei seu laboratório
e que não posso chamar de vida.................Princ.: como você
defenderia este homem? Prof.: eu diria que é um poeta e então
indispensável, muito embora, eu não esteja seguro.................................
Poe. e Ceg. caminham até se encontrarem com a Deusa Minerva, ladeada
por dois homens-cavalos. Minerva atira a sua lança no Poeta, que cai
ao chão. Um dos homens-cavalo retira a lança do seu corpo. Ele
é colocado em um leito e é rodeado por seus amigos. Mas, depois,
ele se levanta pois os poetas só fingem morrer.
Eles cruzam com a Fênix e Édipo.
Finalmente, Cégeste diz ao Poeta que a Terra não é
a sua pátria. O Poeta, então, desaparece, juntamente com
Cégeste.
Elenco: Maria Casares, François Périer, Jean Cocteau, Edouard
Dermithe, Henri Crémieux, Jean Marais, Claudine Auger, Françoise
Christophe, Michèle Comte, Nicole Courcel.
Do filme também participam, em pequenas pontas, atores, atrizes
e outras personalidades famosas da época, amigos de Jean Cocteau, como
Pablo Picasso, Daniel Gélin, Lucia Bosé, Françoise Sagan,
Charles Aznavour,Yul Brynner, Luis Miguel Dominguín, Annette Vadim, Francine
Weisweiler.
(10/01/2009)
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