Ainda me flagram as retinas com o encantamento provocado pelo belo documentário
sobre Humberto Teixeira, realizado por Lírio Ferreira com produção
da filha do compositor, a atriz Denise Dummont.
O HOMEM QUE ENGARRAFAVA NUVENS é o cinema a revelar um
olhar sensível, arguto, delicado e seminal para a compreensão
da presença da Música Nordestina no panorama cultural do Brasil!
Denise Dummont, à frente de projeto belo e importante, aliou sua
vontade de conhecer mais o pai e "apresentá-lo" aos filhos
à determinação de fazer um documentário em honra
da memória do Doutor do Baião, e acabou fazendo uma obra rica
e de suma relevância para a história da Música Brasileira
e, portanto, para nossa história cultural.
Teve a sorte de somar sua garra e disposição à competência,
sensibilidade e refinamento do olhar imagético de Lírio Ferreira,
que se consagra definitivamente, com este novo Doc (após o emblemático
Cartola), como um dos mais importantes, ousados e capazes cineastas brasileiros.
Assinando mais este belo exemplar do cinema nacional, Lírio Ferreira
consegue proezas capazes de fazer de O Homem que Engarrafava Nuvens
um documentário precioso sobre a vida de seu tempo, a música e
cultura de uma época, de um povo, de um lugar.
Depoimentos luminosos como os de Tárik de Souza, Muniz Sodré,
Gilberto Gil e Caetano Veloso, juntam-se a vozes emblemáticas e interpretações
antológicas como as de Chico Buarque para Kalu, a de Bethânia
para Asa Branca e a de Gal Costa para Adeus, Maria Fulô. Destaque-se
a engenhosa habilidade de Lírio ao abrir o passeio documental sobre a
obra de HT a partir de lapidar depoimento do compositor cearense Calé
Alencar, ilustrado com a riqueza das manifestações da cultura
popular do Cariri de Humberto, bem como ao complementar com imagens as falas
de Otto e Caetano Veloso em dois momentos exponenciais do filme: a explosão
da bomba atômica simbolizando o encontro definido por Otto como o de Humberto
e Luiz Gonzaga, e a vertigem do cinema da letra de Caetano em Terra.
Outrossim, a maestria do cineasta reafirma-se ao conseguir despertar ainda mais
os ouvidos do espectador num balé perscrutador da câmera, adentrando
o ambiente embalada pela ternura de Kalu na voz inconfundível
de Chico Buarque, finalizando com foco no artista cantando em estúdio.
Magistral.
Não há como deixar de registrar também a mais bela tomada
já feita pelo cinema da Catedral de Fortaleza, ainda mais imponente nos
acordes precisos de Nonato Luíz. Há tomadas da já tão
cenarizada New York de forma absolutamente inusitada fazendo quase ver uma nova
cidade por entre ângulos improváveis - como o que o Poeta da Luz,
Walter Carvalho, realça no passeio ciclístico de David Byrne adornado
pela tela de raios de metal entrelaçados da ponte de Manhattan em primeiro
plano -, os quais reafirmam um cineasta sintonizado com as idiossincrasias dessa
urbanidade tão própria hoje de qualquer um, em cada metrópole
mundial. E que Humberto Teixeira parecia antever, ao fazer brotar as
primeiras notas do ritmo novo pelo qual mais tarde seria conhecido, resolvendo
levá-lo para paragens distantes e distintas de seu berço torrão,
para tanto contando com a cumplicidade e camaradagem decisiva de Luiz Gonzaga.
Digno de registro e aplauso, por muito bom e tocante, o roteiro minucioso assinado
por Lírio, rico de imagens de arquivo - decupagem sensível e minuciosa
na escolha de passagens essenciais -, e muito confinante à forma de fazer
música do cearense Humberto Teixeira, ao juntar no mesmo baião
vozes de geografias tão díspares como as de David Byrne, Banda
Cabaçal dos Irmãos Aniceto, Bebel Gilberto, Cordel do Fogo Encantado,
Coco das Mulheres da Batateiras, Lenine, Sivuca, Carmélia Alves, Nonato
Luiz, Alceu Valença, Miho Hatori, Zeca Pagodinho, Fagner...
Alguém poderá dizer que o filme é uma viagem muito pessoal
de Denise. É mesmo. E que bom perceber isso na tela. Com a precípua
necessidade existencial a aflorar nas veias da maturidade, Denise iniciou, com
determinação, coragem, sentido de resgate do tempo perdido, e
muito amor, uma peregrinação visceral em busca do entendimento
do trançado de vida do pai. É preciso ser muito forte para topar
registrar para o écran um encontro tão íntimo, assumidamente
atrasado, perturbador, difícil e doloroso, com a disponibilidade assumida
por Denise perante a câmera de Walter Carvalho, o olho de Lírio
e toda a extensa gama de profissionais indispensáveis para o registro
realizado. Foram anos tentando entender o "abandono" da mãe,
o "desencontro" com o pai, a dessintonia de duas pessoas tão
fundamentais na vida da garota Denise.
Os anos tornam maior o abismo, aprofundam mágoas, dilaceram almas, estendem
tristezas, provocam marcas fundas e as cicatrizes permanecem latejando. Não
é fácil revelar sentimentos, expor a alma diante do outro.
E Denise o faz de forma tão verdadeira (o encontro registrado no filme
no qual Denise tenta enfim entender porque o afastamento do pai, porque a ausência
da mãe em momentos tão cruciais, é o primeiro da vida real)
que é impossível não chorar na hora da conversa com
a mãe Margarida Bittencourt - mulher bela e adiante de seu tempo,
atriz que abandonou a carreira porque o marido Humberto assim o quis -, e os
olhos verdes da pianista brilham e marejam, revelando fatos e opções
tão pouco claras a filha até então.
Em busca do pai e do entendimento de sua vida, Denise Dummont descobre a si
própria e engendra via cinema uma viagem dolorosa, aguerrida, necessária
e catártica sobre a própria vida. Bela seqüência, exemplar
do quanto pode o amor e do quão transformador é o conhecimento
de si próprio, viagem que cada um de nós empreenderá, mais
cedo ou mais tarde, uma dor a se atravessar para sair mais forte depois da tempestade.
Denise afigura-se mestra na compreensão dessa passagem existencial. Matéria
de Sabedoria.
E o filme vai-se construindo ao mesmo tempo em que Denise avizinha-se/apercebe-se
da grandiosidade da inserção do pai na Cultura Brasileira. E assim
ela vai permitindo a nós, público, uma nova dimensão sobre
o legado de Humberto Teixeira e o faz alimentada pelo olhar sensível
e a direção acurada de Lírio Ferreira.
Por ser um depoimento tão franco, determinado e encorajador sobre o pai,
mais ainda o documentário sobre Humberto Teixeira azunha, comove, emociona.
Tudo isso está nas entrelinhas de O Homem que Engarrafava Nuvens,
em subtextos arrestados num enorme trançado de renda onde as canções
são as linhas multicores da artesania musical criada por Humberto Teixeira
e as letras são os bilros a criar o desenho perfeito para o arremate
final de cada intérprete.
Embrenhando-se nessa trajetória através da chegada à terra
do pai, do encontro com pessoas da família, com o ambiente físico
e sensorial traduzido nas letras de Humberto, Denise Dummont fez o seu próprio
Caminho de São Teixeira e assim ajudou a escrever a definitiva
página do Baião na História da Música Brasileira.
Quer outra dica de filme? |