Sim, nestas últimas férias resolvi tirar o atrasado no que toca
ao ter ou não ter assistido aos filmes que me comentavam. Devo confessar
que estava ficando irritado com as citações que me faziam de filmes
que não havia assistido ou que sequer supunha terem sido produzidos,
e por isso resolvi empreender uma verdadeira cruzada à locadora do amigo
Paulo para locar, por exemplo, o fantástico longa brasileiro "O
Homem que Copiava" (2002), dirigido por Jorge Furtado e produzido pela
Casa de Cinema de Porto Alegre, a mesma dobradinha que colocou nas telas, entre
outros, o antológico curta "Ilha das Flores" (1989)
- a realidade de uma comunidade que vem depois dos porcos na escala da sobrevivência.
Sei que a maioria dos que se dão ao trabalho de ler estas linhas já
devem ter assistido ao "O Homem que Copiava"; este escriba aqui, porém,
ainda não o tinha feito. Fi-lo agora, como diria Jânio Quadros,
e não me arrependi. Bem como não me arrependi de também
só ter locado agora o também brasileiro "Abril Despedaçado"
(2001) de Walter Salles, muito mais consistente que seu longa anterior, "Central
do Brasil" (1998). E a despeito das críticas que o atual cinema
brasileiro vem recebendo - que o acusam de excessivamente hollywoodiano - "O
Homem Que Copiava" e "Abril Despedaçado" devolveram-me
a certeza de que nossa indústria cinematográfica está atingindo
maturidade profissional e pluralidade de linguagens, algo que não percebi
quando me dei ao trabalho de assistir ao melodrama "Olga" (2004),
de Jayme Monjardim, que me pareceu muito mais uma novela global do que uma peça
da Sétima Arte. E em nada me surpreendeu saber que o Brasil ficou fora
da disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano depois que soube
ter sido "Olga" o filme escolhido para representar a produção
nacional nesta premiação estadunidense. Uma pena, se considerarmos
a qualidade do atual cinema brasileiro. Seriam os lobbies político-culturais
os responsáveis por tão infeliz escolha? Que os silêncios
das entrelinhas o respondam.
Dentre os títulos que relacionei na minha listinha estavam alguns já
bastante antigos, como o clássico "Laranja Mecânica"
(1971), do não menos clássico diretor inglês Stanley Kubrick.
Impressionaram-me a crítica que o filme faz às estruturas repressoras
do Estado e a atuação de Malcolm McDowell no papel de Alex DeLanger,
o líder de uma gangue de jovens que se dedicam à ultra-violência.
Encontrei McDowell também em "O Barbeiro" (2001) no
papel de um barbeiro psicopata morador de uma pequena cidade do Alaska que passava
parte do ano às escuras, devido a sua localização geográfica
na região ártica. Malcolm McDowell é desses atores que
nasceram para interpretar facínoras. "Laranja Mecânica",
"Calígula" (1980), "Bopha! - À Flor da
Pele" (1993) e "O Barbeiro", dentre muitos outros
filmes em que atuou, estão aí e não me deixam mentir. Mas
a despeito de suas qualidades como ator, ao vê-lo agora interpretando
o barbeiro, não pude deixar de associar sua imagem à que vi no
filme de 1971, e o que mais me chamou a atenção foi o seu envelhecimento:
"Nossa, como está velho!" - foi o comentário que troquei
com os amigos Charles e Aline, cujo sábado compartilhamos deitados diante
do vídeo.
Agora, desconcertante mesmo é "Dogville" (2004), dirigido
por Lars Von Trier e com Nicole Kidman no papel de Grace, uma jovem que se esconde
de gângsters na minúscula cidade estadunidense de Dogville durante
a grande recessão provocada pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929.
Este filme foi o que de mais inusitado vi nas telas nestes últimos tempos.
Seguindo alguns dos princípios do "Manifesto Dogma 95", assinado
pelo próprio Lars e também por Thomas Vinterberg - ambos cineastas
dinamarqueses - , que propõe filmes com locações sem cenários
e com o mínimo de recursos técnicos, "Dogville"
tem os cenários sugeridos com fitas-crepe coladas no chão e a
história é dividida em nove capítulos e um prólogo.
Durante às quase três horas de duração do filme,
aparecem apenas alguns poucos objetos imprescindíveis à localização
espacial das personagens. Nesta quase que ausência de cenários,
nossa atenção recai sobre os atores, que interpretam os papéis
dos moradores da cidade. O trabalho de construção de tipos psicológicos
e sociais é impressionante, e a crítica à sociedade estadunidense
e por extensão às relações capitalistas são
mais do que claras. No longa-metragem a personagem Grace é convencida
a pedir asilo aos moradores da cidade. Estes, desconfiados, mas persuadidos
por Tom Edison (Paul Bettany), uma espécie de filósofo local e
dotado de um certo poder de convencimento camuflado sob práticas democráticas
(uma metáfora do Estado?), resolvem aceitar esconder a fugitiva desde
que esta trabalhasse para cada um dos moradores em troca de um pequeno salário.
Na medida em que se intensificam as buscas à Grace e em que a polícia
aparece em Dogville, os moradores exigem uma compensação pelos
riscos que supostamente correm ao escondê-la, e assim diminuem-lhe o salário,
aumentam-lhe o trabalho e não tarda que lhe abusem do corpo todos os
homens do lugar, com exceção de Tom, a quem ela ama. E então
a cidade é desmascarada em todas as suas hipocrisias, escondidas sob
um discurso de louvação ao espírito comunitário
e familiar. E nós, espectadores, atônitos diante da tela, somos
surpreendidos pelo desfecho da história, tão inusitado quanto
todo o restante do filme, em que a própria Grace decide pela extinção
da cidade, com a exceção do cão (desenhado com giz no chão)
a quem decide poupar. Movida pela tentativa de compreender a atitude do outro,
e por isso perdoá-lo, aceita o trabalho, o castigo, as injustiças
morais, o estupro e a prisão a que é submetida; mas seu pai (o
gângster que a procurava) consegue convencê-la de que se não
houver punição não haverá redenção,
e daí sua decisão em exterminar Dogville. Ao final, com os créditos
do filme, uma série de imagens do nosso mundo contemporâneo nos
são jogadas à cara e nos obrigam a refletir no que consiste a
natureza humana e o que nos trouxeram as instituições que inventamos
e que tanto defendemos como valores sagrados. "Dogville" não
e apenas uma obra-de-arte, é, também, um tratado filosófico
sobre o Ocidente.
Outros ainda foram os filmes que resolvi assistir. "O Fabuloso Destino
de Amélie Poulain" (2001) do diretor francês Jean-Pierre
Jeunet, por exemplo, conseguiu me devolver um pouco das esperanças na
humanidade; assim como o fez a história do pintor judeu Amedeo Modigliani,
no filme "Modigliani" (2004) do escocês Mick Davis, e
o engenhoso "Tango" (1998) do espanhol Carlos Saura, que apesar
de cansativo tem um final surpreendente. Mas "Dogville" é,
definitivamente, um divisor de águas na história do cinema e contribuiu
para matar um pouco da minha ingenuidade diante do ser humano. Agora, se devo
agradecer ao cineasta dinamarquês, ou se devo odiá-lo por isso,
é coisa que ainda não sei.
(Blumenau, 20 de fevereiro de 2005)
Dogville
Direção: Lars Von Trier
Duração: 171 minutos
Ano: 2003
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