Passados mais de quarenta anos de "A Estética da Fome" [Glauber
Rocha/1965] vimos o cinema brasileiro entrar em ascensão, decadência,
letargia, retomada e agora num acomodamento em torno das leis de incentivo e
editais. O nosso Cinema [como forma artística de expressão] resiste
na obra de um ou outro realizador, com a atividade se concentrando [seguindo
a lógica do Mercado] nos centros urbanos de maior atividade econômica
e financeira.
Não se trata de solicitar status, deixar registrado ou exigir reconhecimento
da existência de obras cinematográficas em todo o Brasil. Não
existe [e nem há necessidade de existir] quem ou o quê possa dar
ciência sobre essa questão. Filmes de ficção e documentários
são atualmente ocupação de espectadores, críticos,
técnicos e artistas por todo o país. Os avanços na tecnologia
[com o conseqüente barateamento nos custos de produção] é
uma das principais causas da proliferação do cinema no Brasil.
Entretanto, nossos filmes de vitrine quando não imitam tentam fugir da
gramática cinematográfica das Metrópoles. Não conseguiram,
não conseguem e não vão conseguir. A caneta que usam tem
a cor definida, o papel desenvolvido, os movimentos dos membros educados sob
as receitas, as conexões neurolingüísticas engendradas e
o sorriso de lerda satisfação filial intima[da]mente ligados às
Metrópoles.
O nó não está na herança/filiação
eurocêntrica, nem em Hollywood. Está sempre na imitação,
em seguir as estradas criativas desenvolvidas sob características que
não refletem a nossa organização social. O resultado: obras
acéfalas ambientadas em estereótipos de favelas, sertões,
guetos, ruas e diálogos, lugares e situações que de tão
inverossímeis e risíveis passam do ponto do ridículo.
Não se trata de ruptura, mas de continuidade. Não há necessidade
de reinventar o Cinema em cada filme. Os elementos constitutivos de uma orquestração
cinematográfica estão dispostos, em desenvolvimento contínuo
e cada vez mais à disposição daqueles que tenham a ousadia
de trilhar esse caminho. Continuidade no sentido de dar seguimento na utilização
dessas ferramentas: conceituais, estéticas e materiais.
Evidente que toda criação não parta do zero, mas a partir
de conceitos e determinações histórico-pessoais de quem
lança a proposta da realização do filme. Os sujeitos que
o realizam estão marcados por motivações impregnadas de
valores aos quais podem dar continuidade reafirmando ou contestando-os. Continuar
no sentido de seguir em frente, de construir a estrada e indicar um novo caminho
e não retornar ao começo da jornada. E uma vez com as mãos
na ferramenta, faz-se necessário que se as use.
A idéia de realizar um filme independente do grupo que chamo de "independente/dependente"
surgiu no início de 2004. Naquela época eu e Geraldo Cavalcanti
percebemos a possibilidade de realizarmos uma obra em linguagem cinematográfica
nordestina, sertaneja, brasileira e universal. Na totalidade porque coletiva
e engendrada por profissionais de formação diversificada, ambientada
numa região estereotipada ao extremo e que teria a sua existência
construída [sob a lógica do "paternalismo" artístico]
com quem não tem o direito de fruir cinema: os não-incluídos.
Surge a idéia de Cinema Processo [Viva o Cinema Brasileiro! e Mariposa
Blanca], entendido não como forma nem estética, mas logística
de produção em aberto. Um sistema que possibilite realizar filmes
com o mínimo de dinheiro e o máximo de qualidade artística
que o ambiente social/profissional determinado permita. Não se trata
de uma alternativa possível, mas de uma empreitada. Só será
possível tanto quanto for firmado o compromisso com cada um dos atores/sujeitos
necessários para a realização do filme, de que não
se trata de realizar um filme, mas de realizar um filme que tem que ser realizado.
Assim sendo, o Cinema Processo aponta as condições materiais necessárias
para tornar uma obra cinematográfica realizável, com ou sem muito
dinheiro. Evidente que não se possa prescindir de sua existência
[do dinheiro], mas de minimizar ao máximo a sua ingerência na decisão
de se realizar um filme.
Cinema Processo é a constatação de que é possível
realizar filmes com características verossímeis aos atores sociais
de determinada região/sociedade/povo. Uma obra, um regimento dos artistas
locais de vanguarda, um acordo entre esses técnicos e artistas de que
a referida obra tem que impor a sua existência, a conexão das redes
de interesse para que essa obra tenha vida. O processo de realização
fazendo parte da própria obra para se fazer cinema no sertão,
no Brasil e em qualquer lugar do mundo.
Os não-incluídos estão convidados a se incluírem.
O filme Viva o Cinema Brasileiro!, obra primeira do Cinema Processo, tem a força
do verbo e a euforia da aclamação. Um Viva! ao cinema nordestino,
brasileiramente brasileiro, no seu atrevimento por buscar furar o bloqueio.
Um filme criado, encenado e protagonizado por pessoas simples e comuns ao universo
local/mundial. Um filme com a marca da cor, da areia, da música e da
noite do sertão/deserto/oásis.
Ousar sonhar,
Ousar viver.
(Natal/RN, 25 de maio de 2006)
Buca Dantas
Viva o Cinema Brasileiro!
diretor
Geraldo Cavalcanti
[Assistente de direção/roteirista de Viva o Cinema Brasileiro!/
co-diretor, com Guaraci Gabriel, do filme Mariposa Blanca]
O momento sublime da criação, a espontaneidade no processo criativo,
são algumas das maravilhas com que o cinema processo nos beneficia. Testemunhar
aquelas pessoas que vivem nas regiões mais insípidas deste país;
muitas delas nem sequer ouviram falar de cinema, vê-las interpretar as
suas próprias histórias, numa relação de jogo com
a vida, foi mágico.
O cinema processo pôde descobrir o potencial artístico que há
nessas regiões castigadas pela má vontade política daqueles
que administram esse país. Um povo ávido por contar as suas histórias
e assim poder re-significar a sua existência; Afinal, o que seria da humanidade
se não fosse a capacidade que temos de contar as nossas histórias,
narrar os nossos feitos, falar de nossas experiências... que graça
teria viver? O cinema processo pôde levar às comunidades mais carentes
e caladas a oportunidade de falarem delas mesmas; e foi mais além, são
crianças, jovens e velhos, homens e mulheres que além de contadores
também são interpretes das suas próprias histórias.
Riccard8 San Martini
[Figurinista/direção de arte de Viva o Cinema Brasileiro!]
O "cinema processo" mudou a minha forma de criar, de trabalhar, de
tolerar, de me adaptar e de viver! O "cinema processo" me causou dor,
calor, sede, fome, vermes, angustia, saudades, mágoa, lagrimas, euforia,
desapego, liberdade, entusiasmo, vida interna, amor e ação! E
viva o cinema brasileiro!
Luiz Gadelha
[Músico convidado para a trilha sonora de Viva o Cinema Brasileiro!]
Tudo sendo criado instantaneamente: ações, roteiros, luz, musica.
Um filme inteiro. Estava lá pra compor uma canção, especificamente
da última cena, juntamente com Valéria Oliveira. Uma canção
pra um filme em cinema-processo!!! Não sabíamos o que seria do
filme minutos à frente, ninguém sabia! Tudo era uma grande surpresa.
O roteiro sendo traçado pela equipe em conjunto e pelos novos atores:
moradores da região que se aproximavam pra saberem do que se tratava
aquele amontoado de gente.
Refizemos a musica varias vezes, visto que o filme tomava seu destino sozinho.
Era esse o processo: música-processo pra cinema-processo!
As locações, as idas até elas nas vans, chacoalhando nossos
equipamentos, a expectativa do que iríamos ver, as paradas para o almoço,
os habitantes locais, pessoas simples, lendas, começos de vidas, vidas
cheias de tramas pra se contar, dezenas de roteiros reais que dariam rolos e
rolos de filmes...celebrando as vidas brasileiras, do português arrastado,
do bem pronunciado, do reinventado, do arcaico, do quase mudo, do que berra,
do que chia, do que dobra os erres, do que traduz nossa arte cotidiana que só
vira musica, escultura, peça de teatro, pintura, bordado, livro, contos,
cinema por que nunca se esgotam suas possibilidades; a cada segundo nasce um
novo sonho, de pegar no papel e escrever, de pegar um instrumento e tocar, de
ir ao palco e declamar, de segurar uma câmera na mão e registrar
pra sempre o que olhos captam como poesia.
O diretor, o diretor de cena, o diretor de fotografia, o cenógrafo, o
roteirista, a produção, o elenco, os músicos, os auxiliares,
o motorista; todos escreviam estrofes desse poema, que leva um pouco de cada
um, do imaginário, da realidade, das frustrações, das conquistas
nesse processo humano de fazer cinema. Foi o que mais sentir: humanidade, solidariedade,
equipe, família; como são aqueles que ficam juntos a qualquer
custo, a qualquer sonho que pedir por socorro.
Kayonara Souza
[Produtora executiva de Viva o Cinema Brasileiro!]
O Viva o Cinema Brasileiro! foi pré-produzido e produzido sob muita adrenalina
(é isso mesmo!), num tempo corrido e inadiável: tinha que acontecer!
Sob quaisquer condições - era essa a condição -
e hipóteses.
O processo do filme foi de completa TRANSFORMAçÃO. Transformação
da idéia para a obra produzida, da realidade dos agricultores para o
sonho, da mente e coração de toda equipe, dos conceitos já
engendrados para o renovável, da paisagem seca para a produtiva, da falta
de verba para o excesso criatividade e competência. E o processo continuará
a cada exibição do filme, a cada aprovação ou reprovação.
Quer outra dica de filme? |