Por duas vezes, tive o prazer de assistir a CAFUNDÓ, filme
de estréia do ator Paulo Betti na direção. O filme
começa a ser lançado mês que vem, primeiro no interior de
São Paulo, depois vai ao Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Norte, sempre
com Betti participando de encontros com a platéia para conversar sobre
o filme. Em breve vai chegar à sua cidade e você já está
convocado para uma sessão: é programa obrigatório e prazeroso
para cinéfilos, estudantes, professores e interessados em cultura de
modo geral.
Betti está de Parabéns. Com o filme, revela novas facetas:
competência para dirigir equipe tão grande, ousadia em realizar
história tão complexa e garra para enfrentar e superar todas as
dificuldades que (ainda) acometem os que se aventuram a fazer Cinema no Brasil.
O ator/diretor realizou uma superprodução após 10 anos
acalentando um sonho, e com muita ousadia, desgaste, pedras no caminho e fôlego
invejável conseguiu concretizar com dignidade o filme alimentado durante
tanto tempo. Pela segunda vez, o filme é muito melhor: descobri um feixe
de janelas novas a se descortinarem diante de meus olhos. O início é
bem singular, como um prólogo teatral, passado nos dias de hoje: Lázaro
Ramos no meio da agitação do centro paulista tentando conseguir
recursos com truques de mágica, auxiliado por uma Leona Cavalli
atenta e desperta. Daí o filme começa e nos transporta ao passado
sombrio da escravatura, do preconceito escancarado, da exploração
dos mais pobres e mais fracos pelos donatários do Poder. E vai-se descortinando
a história do CAFUNDÓ onde estão enredados os personagens
de Lázaro e Leandro Firmino da Hora (ótimas atuações),
complementados por grande número de figurantes, atores e atrizes coadjuvantes,
dando cor e vida às muitas ramificações da história
de João de Camargo, baseada nos fatos reais que povoaram as histórias
contadas a Betti desde a infância. Leona Cavalli, atriz de inegável
talento,compõe com graça e sensualidade sua enigmática
personagem, exponencial quando "incorpora" uma entidade mística
qualquer em festa na beira da praia. Um momento que não descola da retina.
O Nhô João de Camargo construiu uma estrada no caminho da
roça do avô de Betti, portanto, ele tem propriedade para contar
esta história e o faz de forma muito inteligente, instigante, mágica
até, compondo através de esmerada produção (leia-se
Rubens Gennaro e Virgínia Moraes), rodada em várias partes do
Paraná, um painel vasto, denso, rico e bem fotografado do país,
com caprichada direção de arte e elenco cativante. Destaque para
a composição do take no qual Juliana Betti canta
em trajes de época à frente de uma procissão. A cena é
de uma beleza ímpar e a voz de Juliana é um bálsamo.
O filme é um painel atrativo de cores, ritmos, crendices, superstições,
misticismos, preconceitos, atrasos e sincretismos religiosos. Feito a tradução
de um autêntico CAFUNDÓ entranhado no fundo de cada um de
nós como um reflexo, por vezes incômodo, da personalidade de cada
brasileiro, eivada de sincronias e dessintonias, anacronismos e anagramas, complexidades
e incompletudes, razão e emoção, dúvidas e incertezas,
vertentes multifárias e versões as mais díspares a brotar
sem limites de cada uma de nossas diversas matrizes sentimentais e arcabouços
genealógicos. Forma-se assim um caleidoscópio rico, super colorido
e complexo, o qual, de onde quer que se observe, produzirá novas figuras,
outros conceitos e muitas interpretações, conforme seja o sentimento
a trafegar pelas vielas da alma no instante em que o observemos.
CAFUNDÓ tem dor, sofrimento e luz, tem sexo, desejo, aventura,
arte (como na linda cena da construção do santo para a igreja
da Água Vermelha), perseguição, fé, afirmações
e relutâncias, mulheres altivas e homens guerreiros. Aplausos para
a excelente Direção de Arte de Vera Hambúrguer, a fotografia
de José Roberto Eliezer e a interpretação de Valéria
Mona (que lhe valeu troféu de Melhor Coadjuvante no FestCineGoiânia,
realizado em novembro passado).
O filme de estréia de Paulo Betti e Clóvis Bueno
tem ótimo padrão técnico e grandes qualidades artísticas.
CAFUNDÓ é uma história forte e cheia de recônditos
sinais dos muitos paradigmas formadores da verdadeira alma nacional, cujo desfecho
evidencia mais uma das facetas de João de Camargo, também
compositor, com a Banda 5 (nome da banda criada por ele) entoando algumas
composições próprias, em frente à igrejinha tão
procurada e querida pelo povo. Um fecho de ouro para um filme de impressionante
brasilidade.
Cafundó
Direção: Paulo Betti
Duração: 98 minutos
Ano: 2005
Quer outra dica de filme? |