A Garganta da Serpente
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Estação: Liberdade

Entra no Metrô e fica a relembrar a entrevista, amargurado.
- Nome? Pela enésima vez mostra a Identidade.
- Profissão? - Atual? Desempregado, não por vontade própria,
mas pela atual conjuntura do País.
E a palavra conjuntura de repente é hilariante e desgastada
como a sola de seus sapatos ou como a roupa amarfanhada.
E o deslizar das rodas parece repetir e repetir:
- Volte amanhã... volte amanhã... volte amanhã...
Voltar como? Apertara o último dos múltiplos entre os dedos
e depois a escada rolante o levara suavemente
para a bocarra aberta do Metrô.
E os zerinhos vermelhos que o fitaram
quando depositou o último bilhete
eram os olhinhos da fome que o espreitavam.
Uma onda de revolta o envolve e pensa pela primeira vez em assaltar.
Procura mentalmente sua vítima:
pode ser a negra que, sentada, lê tão calmamente,
ou o executivo que discute com outro o que ambos não entendem,
ou a universitária de mini-saia e rabo-de-cavalo
sobraçando livros recheados de teorias,
ou o rapazinho metido a hippie, mas não é.
Lá bem do fundo então vem a voz pausada
a informar que Liberdade é a próxima estação.
De repente, quase louco, alucinado
volta-se para o executivo, vai dizer: - Isto é um assalto!
mas diz-lhe apenas: - É Liberdade? Merda!
E a porta da composição então se abre
e ele aguarda o apito de quando irá fechar.
Fingindo tropeçar, escorrega para os trilhos
e o trem prossegue frio, indiferente:
- sssshiiiii... vuuummm... sssshiiiii...vuuummm...
morreu mais um... morreu mais um... morreu mais um...



Leda Galvão

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