Não, as palavras não fazem amor
Fazem ausência
Se digo água, beberei?
Se digo pão, comerei?
Alejandra Pizzarnik
A decadência do Império Romano...as violentas invasões
bárbaras...Idade das Trevas? Nem tanto. Para alguns autores, desde Carlos
Magno (Século VIII e IX) e mesmo em XII e XIII a época é
de muito progresso, fundamentos da civilização moderna, doutrinas
sociais e econômicas no terreno das idéias. Preserva a tradição
cultural helênica e o direito romano. Conserva e transmite a tradição
cultural latina. Glorifica-se o espírito guerreiro... Criam-se as universidades,
redescobre-se Aristóteles, processa-se a revolução social.
Todo esse preâmbulo assim, jogado no ventilador das idéias, porque
o tempo precioso da história atrai, cativa, fazendo o curioso literato
e pesquisador viçado surtar mesmo, por assim dizer. Sorte nossa? A corrupção
no império romano, a estagnação; as ruínas das classes
aristocráticas, o feudo por si só não era muito provido
no campo das saturações; guerra entre senhores feudais, energias
libertárias perdidas de uns e outros se matando a torto e a direito,
hordas e bandoleiros, a força bélica conspurcada e, sim, era preciso
inventar alguma coisa para que fossem beligerar longe dali, de entre eles, por
algum motivo ou razão que não destruíssem patrimônios,
que tudo poderia literalmente sumir do mapa; que a igreja ficasse sempre ao
centro, que as riquezas fossem de alguma maneira (que importasse o que fosse)
aumentadas custasse o que custasse. Ah Deus, quantos milhões morrerem
em Teu santo nome; quantos Te usaram para matar, pilhar, destruir, profanar
crenças. E a arraia miúda sendo a bucha de canhão, os incautos,
os néscios. A igreja cristã que, depois do cisma grego (a verdadeira
igreja cristã hoje é a ortodoxa desta linha) virou um antro que
depois se revelaria na igreja caostólica (Deus fechou os
lhos para terra durante a idade média, diz o atual papa pseudo-pensador
de origem germânico-fascista), e vai por ai o esconderijo da história,
os subterrâneos amorais do que realmente está por trás
de tudo mesmo e Drumond, o poeta de Itabira já nos alertava sob
vezo de uma rica ótica pós-moderna: a história é
remorso. Santo Deus, então pecamos contra o Teu Santo Nome! Mas, Maomé
foi o culpado, que Alá o proteja! Os vitoriosos escrevem a história.
Os derrocados amargam panurgismos. A nobreza, a igreja, a cavalaria e os servis.
Os papas, pecadores, com ilusões dantescas. Autoridades-blefes. Pré-nascimento
da burguesia assustando antros de escorpiões. A igreja decrépita
perdia terreno, corria riscos, sangria desatada e não era de ceias santas,
mas de interesses escusos. Era preciso unir os desgraçados de toda a
sorte, fazer com que tivessem um ideal-qualquer-coisa em comum, não entre
si com as decadências sazonais, de meio, destruindo terras, posses, matando-se
entre si, papado na linha de tiro e caminho de reconhecimento pouco ético.
Tinha que haver uma saída. Os primeiros cruzados, os problemas que tiveram,
o santo sepulcro o mote na mão dos infiéis - e, eureka
(ou devo dizer aleluia Judas?) descobriu-se a pólvora: tava ali a saída,
saltando aos olhos dos nobres, do clero. Iriam usar Jesus (Deus? Santo
Deus!) em nome (santo nome em vão) de uma guerra escusa, todos por todos,
invenções de milagres, aparições, idolatrias-(disfarçadas
de veneração), desespelhos, caça às bruxas, e lá
se foi o povo gado marcado alienado (crendices, intempéries, superstições
nodais) lutar orienta a fora, saquear, pilhar, bandeiras ao vento. Bem, por
ora basta. Cessemos as purgações dialéticas e analíticas.
Ai do sal da terra, ai de ti Jerusalém!.
Quando um escritor se propõe a escrever um livro, merece respeito o projeto,
claro. Quando o escritor passa cinco anos macetando suas idéias-lustres
no papel, êpa, aí tem coisa, pinta uma idéia-livro portentosa.
Livrai-nos Senhor de todo mal. E viçam causos. E belas conseqüências
num entendimento açodado de quem pega um livraço mesmo, um tijolão
pesado de quase 500 páginas e lá entra na história nua
e crua. Vassallu, em latim, o nome da obra brasileira, riquíssima. Por
que não Vassalo mesmo? Bem, o subtítulo A Saga De Um Cavaleiro
Medieval poderia ser outra, melhorada para vender o peixe letral, a idéia-obra,
o baita romance de cardumes. Sim, porque quando peguei o livro pensei: autor
novo em romance sistematizado. Perdão, leitores. Entrei de mala e cuia
e devorei como um canibal de brochuras. Nesses últimos tempos, de tão
escassos trabalhos bons na área de romance/novela/(ficções),
posso dizer que foi o melhor livro que li, da estirpe de O Físico, O
Perfume, ou mesmo os clássicos do Itavo Calvino. O autor, médico
Doutor Segio Mudado é muito bom e valeu a pena pelo gabarito que tem
e pelo quilate da obra. Sabem de uma coisa?: eu me vi dentro de um filme sobre
a Idade Média. Já pensou? Livro bom faz bem pra gente, pra mente,
pra cultura, pra civilização principalmente contemporânea
nesses tenebrosos tempos neoliberais de muito ouro e pouco pão (e pouca
cultura literária até).
O livro, claro, aqui e ali tem seus pequenos errinhos naturais de revisão
(pecado certamente perdoado pelo volume da obra extremamente feliz de concepção)
de estupendo e grosso calibre literal, alguns muito bem observados pela mestra
e Maria Ilsen de Curitiba, Pr (que mo emprestou o livro), teria que ter tido
sim, um necessário e belo investimento financeiro na midiática
divulgação ampla da obra, se eu fosse um diretor da Globo faria
uma mini-série internacional e seria um sucesso de se vender no mundo
inteiro, como Escrava Isaura. Será o impossível? Vassalo madurado.
A montagem narrativa, a arquitetura cênica da narrativa, o depoente (bem
sacado) historiando tudo, as cruzadas, os escândalos, as paisagens, o
personagem principal Ybert de Troyes muito bem sacado, verossímil e bem
quase visível (vivível) no encantário literário
de qualidade e de profundidade histórica, amores e sofrimentos, mentiras,
histórias dentro da história, lendas, invencionices bem calçudas
e bem encaixadas, um ótimo escritor, bem inteligente e criativo, pode
se dizer que escreveu o livro de sua vida. Tem mais? Sinceramente, um livro
que eu gostaria de ter escrito. Adorei de já agendar para reler, para
emprestar também para amigos que adoram uma ficção de excelente
qualidade. Batalhas, cenários, traições, enfeites poéticos,
imagens bem trabalhadas. Gente, um livro e tanto. Fui cativado. Embarquei na
viagem dos Cruzados, como um cético, um crítico, um sandeu do
terceiro milênio, mas acabei abduzido pela linha de montagem da obra enquanto
construção técnico-literária, querendo ler mais,
ir adiante, querendo saber o que ocorreria no devir, querendo chegar logo ao
final, e, ponto pro autor Sergio Mudado. Ele conseguiu por excelência
o seu objetivo. Saí da leitura com a alma lavada, com sabor de quero-mais,
sabendo que, sim, li um clássico da literatura brasileira contemporânea
mesmo em entalhes e nuances exóticos, de emboabas.
O narrador central, o linguarudo Ruivo, um senhor personagem, entre médico,
astrólogo, filósofo e o procurei fruir (desfrutar) em suas
sandices e criames, comparando entre outros personagens de outros livros. Sem
igual. A idade média dos românticos e também das bestas
humanas de lado a lado (quem é infiel pra quem?), ora o bárbaro
sendo de um lado, ora sendo de outro, a santa madre igreja católica por
trás berrando horrores nos descalabros (acho até que na verdade
foi bem pior, o autor pegou leve, moderou a mágica mão/mente numa
boa), as paródias sobre as cavalarias, o lado espiritual, o lado loucura
braba, o homem atrás de alguma coisa que nem era a bendita santificação
mesmo, mas a loucura da viagem resgatadora, muito além da fé o
bem material, uma horda atrás de outra horda. O santo sepulcro? Um mero
detalhe. E um final que, sim, bem ao estilo que gosto, a la William Shakespeare,
arrebatador num sentido. Li-vi (vivi) a cena final. Encorpada. Digna de um final
em cinemascope de Hollywood. Já pensou?
O livro é tão bom, tão obra-prima, tão importante
que, falando sério, Vassalo ficou pequeno para o título, Vassallu
ainda piorou, e, o sub-titulo não ajudou em nada, Só lendo a obra
de fio a pavio, evoluindo, é que você prendido pela lógica
seqüencial dos arames narrativos, fica preso ao livro, gosta, se deleita,
e vai babando como um ledor voraz até acabar e dizer que o autor merece
respeito e admiração. O bem e o mal? Um mero detalhe quando interesses
escusos, político-religiosos (do mal) estão por trás, nos
sujos porões dos podres poderes, dos nefandos bastidores. Dizem que,
quem muito bem estuda a história, vira ateu, comunista de carteirinha.
Aleluia Karl Marx, esse Vassalo não terrifica assim a igreja como deveria
(poderia), ficou mais pro lado de uma ótica do Ruivo que narra contentezas
e prazeiranças do arco da velha, mas, conta muito bem, comendo pelas
beiradas os fatos centrais, um olhar também estarrecido para a miséria,
a impunidade, as sandices de tantos sandeus do lado peregrinador com endosso
de fanático núcleo papal. Sergio Mudado não é fraco
não. Carece ser muito bem reconhecido. Espero ler outros livros dele.
Ele escreverá outro como esse, seu número um? Espero
que a editora faça uma bela revisão da próxima edição.
E invista muito cacau numa outra impressão, propagação,
divulgação séria, competente. Sergio Mudado merece respeito
dessa investidura. Vassalo, a saga de um cavaleiro medieval é tudo isso
e muito mais. Quer saber? Compre o livro. Leia o livro. Gaste o livro de tanto
bem o ler. Adore o livro. O que me foi emprestado eu não cedo e nem empresto
pra ninguém. E vou ter dó de ter que devolver, se preciso for.
Sou vassalo de livros de boa qualidade, tenho minha própria saga pra
curtir, para apreender e contar. Conheço sangue, suor, lágrima,
cobro humanismo de resultados... O tempo é a mão de Deus,
diz o autor, e o homem a sua peçonha, conclui. O meu pai
dizia que o melhor juiz é o tempo, que dá a cada um segundo o
seu merecimento. O autor foi premiado e escreveu o livro de sua vida, ao nos
dar um grande livro para as nossas precárias vidas errantes (e em erranças).
O homem é o fracasso de Deus? Com Ecce Homo Sergio Mudado,
podemos dizer que o homem é o sucesso de Deus. A história é
remorso sim, mas tem seus letrados artistas excepcionais para descolorir (em
preto e pranto), colorir quando soam a trombetas, colocar pingos em is, pingos
em dáblios, revelar a face das memórias inventadas, capitulações
de idéias incendiárias, registros letrais que dignificam a raça
humana, a espécie humana. O anjo caído às vezes tem lampejos
divinais (no letral também) e voa na imaginação que nos
seduz, cativa, empolga. Sergio Mudado é dessa estirpe, mergulhou no passado
e resgatou essa ópera bufa que foi a idade média trevosa, com
um discurso enriquecido de nervuras, dando-nos proveito de sua determinação
fora de série. Saberemos aprender as lições? A história
é um enorme ponto de interrogação à beira do abismo,
quando os piores abismos foram a própria Idade Média e depois
o nazismo e sua guerra louca, tudo com o manto ocre da santa igreja fazendo
tipo e fútil pompa, e ainda (blasfêmia!) em nome de Deus, de um
deus, quê deus? Há um Deus. A história é uma pedra
na consciência da civilização. Van Tieghem diz que a categoria
social e a importância do escritor crescem em forma notória. Deve
ser isso. Os privilégios dos caminhos da literatura contra os sandeus
do absurdo que ainda impunemente viçam e mandam. Milton Hatoum diz que
o escritor passa a vida inteira tentando dizer uma verdade profunda através
de uma invenção literária. Sergio Mudaro acertou e brilha
na sua obra. Aliás, o próprio dia de brilhar (ilha de edição?)
vive dentro dele, espelha ele, está no romance dele, Vassalo. Carne e
coragem. Idade Média destilada como sangria letral. Por fim, como muito
bem observou a amiga Maria Ilsen na apresentação do livro no site
da Livraria Cultura, só a consciência da finitude explicaria a
busca da continuidade muito além da vida, além dos sentidos. Alguns
se tornam vassalos desta busca. Outros, plantam árvores, criam filhos,
deixam obras importantes como Vassallu, A Saga de um Cavaleiro Medieval.
Vassallu - A Saga de um Cavaleiro Medieval
Autor: Segio Mudado
Editora Altana
454 páginas.
2006
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