"Graciliano Ramos, na sua aparente rudeza, comovia-se
com o desamparo de seus personagens, nos quais identificava o seu próprio
desamparo (...)"
(Ferreira Gullar)
Um dos maiores, se não o maior escritor brasileiro de todos os tempos,
o eterno Graciliano Ramos, um dia, no distante e futuro devir, ainda será
muito discutido (em vãs tentativas de ser inteiramente despido/desvendado),
e, poucos aceitarão a minha tese de que, Angústia, sua obra maior
revela-o inteiramente, pois é verdadeiramente um íntimo "escorpião"
peregrino na sua alma de tez chão, traduzindo-se e traduzindo-o de forma
pura & nua para a revelação do Eu de si mesmo, no self de
sua escrita como exercício de solidão, de purgação,
de limpeza (até mesmo freudiana) de sua amarga/azeda alma triste, talvez
até maníaco-depressiva (buscando a pureza do simples em humildes?),
com sua narrativa crítico-irônica - (surto psicótico do
escrever-se para livrar-se do que sentia? - parafraseando Borges), quando, então,
traduz-se como personagem de si mesmo, na máscara-persona que felizmente
(para nós, caros alheios) veicula a mais nobre literatura que o Brasil
já produziu e ainda não coube desvendar in totum, ainda bem, pois
dará muito pano pra manga.
Metáforas? Toda a vida de Graciliano Ramos é uma. Quebrou o ângulo
no seu íntimo ponto de fuga. Nasceu na Cidade/Zinha de Quebrângulo.
Isso não quer dizer quase nada. Secas (o meio-teatro de absurdos ou mundo-sombra?)
surras (i)memoráveis do genitor colérico, rancoroso. Somos de
onde viemos?
Violência psicológica (amor e dor), física (mente insana,
corpore...) sociedade (hipócrita, decadente, amoral). Ficaram por isso
as marcas das personas (do ser-se de si) reveladas na arte-despojo: desde os
tipos caboclos, capiaus, mambembes, todos em sua decomposição
se devorando intimamente, numa destruição do panurgismo patriarcal
imposto, mais as pantominas nas narrativas de historicidades sórdidas.
E ele purgando-se - na ordenação tópico-frasal da própria
ordenação sintática.
Angústia é isso tudo mesmo. Recriação de um abrangente
"Todo" ocre arrancado do ser de si. O desespelho. Ou o cacto no/do
espelhar-se. Nódoas? Ficção de memórias revisitadas.
Rememoração-fermento. Ele tinha medo do que era e não podia
fugir incólume e inteiro de si mesmo. E do que se revelava obtuso ou
não, no escrever. Um eco sem saída. Abismal, diga-se de passagem.
Por isso ao seu jeito se achava chinfrim no seu lado criador-criação
de Angústia. Ali, a alma nau no espelho. Então o ser era precário
e a obra idem? Ou, muito pelo contrário para nosotros que fazemos ilações,
aludimos, tentando traduzir ícones e destemperos de seu íntimo
pisado, transido, reinventando Com/Vivências, mais a espetacular criação
e um extremado lado "sentidor" (ai Clarice Lispector!) no seu desatar
nós, desamarrar iras & vinhas, quebrar jejuns, troçar cadarços
linguais, fundir espectros neurais, sempre com déficit afetivo de origem,
de berço. Todo mal não começa pelaí? Então
Freud explica o quê e o quantum/quanta? Estereótipos? Haja palavras.
O medo de revelar-se no oculto. E o susto de, aqui e ali, resvalar-se em si.
O oculto que se revela inteiro e pleno em Angústia. Perdas - e drenos.
Arquivo genético-sensorial e os rebites (refluxos) do inconsciente na
memória como butim decorrente para o narrar-(se) degradante? A humanidade
dele - um humanismo de resultados (visão plural-comunitária) -
manifesta no peregrino curtume dos animais. Mimeses. A fuga para dentro, o outro
lado do self. A dimensão medida na travessia dos palavreios.
A fuga para o cárcere da infância (não por acaso nome de
outro livro). O pessimismo entre o niilismo e o árido meio/ambiente (tez-chão).
O absurdo e o subterrâneo. O escorpião da alma mordendo (e urdindo)
confeitos de linguagens criticamente emplumadas. O desvio do olhar, mas o ponto
de fuga ficando na sofrência. Mixórdias. Toleimas. Não há
como se fugir do lugar que está. Ou há, feito um noiteadeiro na
escrita-limite?
Depois, numa soma abrangente, tudo está em Angústia. As outras
obras suas são silêncios-andaimes para a sua cruz vivencial acabada
em Angústia. Deduzindo, não concluindo. A escuridão revelando-o.
As palavras cruzadas como cacos de precipícios. A resistência pela
dor assimilada em sublimação/resignação. O barulhar
de seu silêncio-albatroz. A pena castigando o cárcere de existir-se.
O medo de se perder no fio de navalha da palavra, revelando o oculto pelo desdizer.
Será o impossível? As macieiras com mandorovás. As técnicas
dos camuflos. As ubres do seu alpendre pedrês.
O hiato entre o real, o imaginário e a dor dessa moenda. Um suicida extremamente
pessimista e cobrador de si, já que, para quem amava de berço
era quase víscera exposta. E assim tinha que (para sobreviver até)
parecer raso. Para não correr riscos de ser rio truculento de novo com
lamentáveis margens-limites. Quando escrevia ia em busca de si, torneando
parágrafos, inventando o inexistente, mas, sempre e amargamente traduzindo
o indizível de sua dor-beronha.
Queria a estética porque não tinha um conteúdo que aceitava
- e não podia ficar quieto, porque calava fundo? Freud again. Tudo a
ser. Tudo a ler. A figura na retórica, uma coisa. A imagem no enfoque,
outra. Judiação-quirera. O se conhecer com medo de achar-se. As
compartilhações medidas, entre o canhestro e o hediondo. Chagas
familiares. Sociais. Depois, políticas (todo homem não é
um?). Um livro aberto sempre na página errada. E a página de rosto
era isso mesmo dele: Angústia.
A ansiedade-câncer de livrar-se de si, sem ser exato no seu cem por cento
incomunicável. Tentando se parecer consigo. E isso lhe doía por
seu lado sensorial, epidérmico, feito um pote-canga de vísceras
querendo vidas secas e congonhas (ko goy - o que mantém o ser - em língua
indígena).
Esse foi Graciliano Ramos. Procurando se encontrar na sua ficção-agústia.
Estudando para ser simples. E também procurando se revelar homeopaticamente,
sem se acreditar um dia inteiriço e então revelado e traduzido.
E cada um, a seu modo e seu tempo, tira uma casca dessa sagrada árvore-alma
Graciliana. Cada gomo, favo, tomo, crucial. Tempo e imagens. Trilhas e rasuras.
Quando releio Angústia, a cada vez encontro de novo algo que se contradiz
com apenas mera qualidade verbal, e revelava-o inteiramente, como se um arquivo
até mesmo imagético de tudo o que foi, se escondendo de tudo o
que praguejou, na glória da prosa poética, de tudo que se angustiou
na infância, de tudo que vivenciou no podre meio social, de tudo o que
se passou no cárcere de si mesmo, até ser fechado em um, e saber
muito bem lidar com isso, pois isso era ele, era parte dele, de alguma forma
toda sua vida foi entre essas espúrias "paredes" e de ter sido
levado ao limite quando era aventureiro-crusoé pela própria natureza.
E foi punido quando era avesso, além de ter sido empanturrado de acontecências
dolorosas, quando o que mais queria era amar e ser amado, servir e ser ético-humanista,
mas o relho-cincerro da vida lhe cambiou para outro lado entre acervos de escórias/currais,
e butins/refis de dezelos sociais no varejo, quando, então, fugiu-se
na abstração de sua cabeça fora de série, no seu
reinventar palavras - como se resgates de humanidades puras - escrevendo-se
e dando testemunho de que, respigando (no sebo vermelho dos canteiros das palavras)
pelo fio da navalha ainda re/Colhia o melhor no tranco de si, dava-(se) crédito
por paradoxal que fosse, exigia-se muito e ainda, claro, cabrito pedrês,
solene berrava a sua saradinha insanidade que ficará para a história
da literatura brasileira como lastro de vida, como usina de revolta, como oficineiro
da decomposição do Ser de si para o que deveria de ser inteiro
e pleno, e só Deus sabe se, na sua Caverna (ponhamos, o mundo-sombra
de Platão), foi ou não foi tudo isso que de forma tácita
refugou, não inocente e nem incoerente, e, finalmente - sorte nossa -
num liqüidificador de sensibilidade por atacado, produziu-explodiu em graciosos
livros raros, magnos. Aliás, livraços.
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