A Garganta da Serpente
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O espírito do jaguar

(Wilson R.)

A estalagem "Porco-do-mato" tem esse nome por dois motivos. Primeiro: é suja e fica no meio da floresta amazônica, em algum ponto entre o Brasil e a Bolívia; segundo: seu proprietário é grande, sujo e violento - exatamente como um porco-do-mato. Aliás, ele responde orgulhosamente pela alcunha de "Grande Porco".

A chuva torrencial vence parcialmente sua batalha secular contra o calor dos trópicos e o véu da noite envolve a selva. Algumas dezenas de homens - garimpeiros, seringueiros e pequenos traficantes - entretêm-se com bebidas, cigarros e conversa fiada.

O ruído da chuva aumenta quando a porta da estalagem é vagarosamente aberta e um homem de pequena estatura entra, trajando peles e ostentando uma espessa barba grisalha. Apesar da aparente idade avançada, o visitante caminha com a leveza e a elegância de um garoto. Senta-se lentamente a uma mesa e acena para o estalajadeiro. Este aproxima-se, com seus costumeiros maus modos, e pergunta:

- Tem dinheiro, forasteiro?

- Não - responde o homem - mas estou disposto a pagar com trabalho.

- Não preciso de ajuda.

- Então, posso contar uma história.

- E o que garante que é uma boa história?

- Se não gostar, poderá me espancar.

O dono da estalagem sorri, perverso. As dúzias de homens presentes fazem chacota.

- Pois bem. Então conte a história.

- Primeiro, traga-me uma garrafa.

Ao sinal do "Grande Porco", uma jovem negra traz uma garrafa de aguardente e um copo. O velho observa a bela garota e seus olhos ficam marejados de lágrimas. Enche o copo, bebe um grande gole e começa:

"Há incontáveis gerações, quando as ilhas flutuantes finalmente se uniram formando a América Central, homens, animais e deuses caminhavam lado a lado. A nova ponte entre as Américas gerou mudanças de toda sorte, mas o maior impacto foi o encontro de espécies, até então desconhecidas entre si. Nessa época viveu Wan'sel, um grande leão-da-montanha, poderoso líder de seu bando - sim, porque naqueles dias os grandes felinos andavam em bandos. Wan'sel tinha um grande harém com as mais belas e saudáveis felinas do norte. Seus descendentes chegavam às centenas e ele era muito feliz. Porém, havia coisas que o intrigavam. Ele notava que os homens adoravam os deuses, apesar de serem idênticos a eles. Se havia alguma diferença entre as divindades e os humanos, o grande puma não a notava. Encantado, ele então percebeu que havia todo um novo mundo para ser explorado, e seus olhos verdes brilhavam com a expectativa de aventura.

Enfim, Wan'sel resolveu explorar a nova terra criada pelas ilhas errantes e enveredeou-se em uma longa jornada pela América Central. Caminhou meses a fio vendo seres que nunca havia visto. Caçou animais estranhos - e saborosos - e bebeu de rios maiores que as estepes do norte.

Assim foi, até que uma noite ele a viu. Uma felina, sem duvida, mas sua beleza era indescritível. O luar refletia em sua pelagem negra, enquanto ela lambia suas patas, com uma sensualidade profana.

Sorrateiro, Wan'sel aproximou-se da bela pantera negra e perguntou:

- Quem é você?

- Juna'ili - ela respondeu.

- Por que você tem sobre si o véu da noite?

- Por que você porta o brilho do sol?

E aproximaram-se e amaram-se. Pela manhã, Wan'sel despertou e não encontrou Juna'ili. Frustrado, continuou sua jornada.

Certo dia encontrou uma grande aldeia de homens e ficou ao longe, observando horrorizado como aqueles macacos pelados sacrificavam barbaramente animais a seus deuses. Ele não conseguia entender como a morte de uma criatura poderia servir para alguma coisa, além de aplacar a fome do matador. Em meio à fumaça e aos toques frenéticos do tambor, Wan'sel pode ver sua doce Juna'ili sendo carregada, amarrada pelas patas a um pau. Era óbvio que ela estava sendo preparada para o sacrifício em favor aos deuses dos homens, que observavam satisfeitos os atos de covardia de seus seguidores.

Num ímpeto que supera o instinto e a razão - conhecido como amor - Wan'sel invadiu a aldeia e avançou sobre os algozes de sua amada. No primeiro instante, tomados de surpresa, humanos e deuses caíram por terra, vitimados pelas furiosas presas e garras do leão-da-montanha. Wan'sel conseguiu, com seus dentes, libertar Juna'ili, e ambos travaram uma feroz batalha contra os humanos e seus deuses.

Porém, a superioridade numérica e o uso de armas logo mudaram o rumo dos acontecimentos, e tanto Wan'sel quanto Juna'ili foram dominados. Em meio a seus mortos, os homens gritaram para os deuses mesquinhos como iriam vingar-se, imolando os felinos.

Sabia que não poderia vencer - disse Juna'ili - Por que deu sua vida para me salvar?

Não lhe dei nada que já não fosse seu - respondeu Wan'sel.

Eu também tenho algo seu - a pantera olhou para o abdome, já proeminente.

Numa explosão de fúria, Wan'sel libertou-se e atacou seus captores. Mas foi em vão. Inúmeras lanças e flechas o atingiram e ele caiu, moribundo.

Juna'ili rosnou enlouquecida, enquanto era levada até o lado de Wan'sel, já quase sem vida. Num gesto de pretendia ser cruel, ela seria sacrificada ao lado dele. Os homens levantaram suas lanças e os deuses abriram um largo sorriso perverso.

De súbito, os céus gritaram na língua primal do trovão e a figura gigantesca de Tupã se fez presente. Abraçada a ele, a linda Jaci trazia lagos de lágrimas nos olhos.

Malditos! - vociferou Tupã.

A um gesto seu, homens e deuses foram incinerados instantaneamente. Jaci tomou Wan'sel nas mãos e o acariciou.

Por quê? - perguntou o puma.

- Não sabemos - respondeu Jaci.

- Mas vocês são deuses...

- Somos bem mais que isso. Mas as ações dos homens são um mistério para nós.

- Onde está Juna'ili?

A negra pantera aproximou-se, lambendo carinhosamente os olhos de Wan'sel. Suplicou:

- Não parta. Quero que você viva.

- Sabe que não é possível.

- Quero ir com você.

- Sabe que não é possível.

- Mas eu preciso estar eternamente com você.

Tupã interrompeu:

- Isso é possível. Se realmente quiseres e tiveres coragem.

Juna'ili acenou com a cabeça, concordando.

Tupã levantou o braço e pegou uma estrela do céu. Retirou do útero de Juna'ili um pequeno felino pelado. Do puma, ele extraiu o pelo dourado e cobriu o pequeno rebento. Os buracos das flechas ele preencheu com pedaços retirados da pantera. Como não poderiam suportar as agruras, Wan'sel e Juna'ili morreram. Suas almas foram unidas à estrela e devolvidas ao céu, onde brilham eternamente.

Tendo nas mãos o pequeno filhote pintado, Tupã sentenciou:

- Tu, criatura, és o primeiro de tua espécie. Serás belo, forte e feroz como teus pais e tua semente predominará sobre tuas fêmeas. Porém, a cada dez anos, caminharás entre os homens como um deles, na tentativa de entender a razão de sua loucura. Um dia haverá muitos de tua espécie, mas teu espírito será apenas um
".

O silêncio profundo da taverna "Porco-do-mato" consegue sobressair-se à própria tempestade. O velho continua:

- Então, até os dias de hoje, o espírito do jaguar caminha entre nós, a cada dez anos, tentando entender como pode haver criaturas tão estúpidas como os humanos.

O dono da taverna grita, pegando forte o forasteiro pelo braço:

- Chama-me de estúpido?

A resposta do velho tem a forma de longos dentes pontiagudos, e um rosnado ameaçador parte de sua garganta. Imediatamente ele o larga, como quem larga um ferro em brasa.

O homem velho levanta-se e caminha até a porta. Antes de sair, volta-se para a plateia silenciosa e diz:

- Hoje, tanto os pumas quanto as panteras não andam mais em bandos. Todos os leões-da-montanha procuram, solitários, sua Juna'ili, e todas as panteras negras aguardam, ansiosas, por seu Wan'sel.

A porta é fechada quando o velho ganha a escuridão úmida da noite.

Vencendo o torpor que os dominava, um pequeno grupo de homens corre para fora. Tudo o que podem ver são as marcas de patas felinas banhadas pela chuva.

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