Vê seu reflexo na água e já não sabe mais quem é.
A água é mansa e clara. A água não diz nada. A água
diz tudo. A água não cobra. A água chama. O chamado da
água é suave como a brisa vespertina, suave como o mato morno
castigado pelo sol da tarde. O chamado da água não tem mistério,
não exige perfeição, não exige emoção,
não exige educação, não exige falsidade. A água
é dura e fria. Dura e fria como a menina.
Já beijara em silêncio seu amado, tocara seus cabelos em sonhos
e sentira o cheiro de suas mãos calejadas em sua face. Já lavara
os pés do pai e os enxugara com seus cabelos. Já sarara com seus
beijos as feridas da mãe. Já colhera adálias e as depositara
na sala de estar. Já capinara a horta. As cenouras, beterrabas, couves,
mostardas. Os pés de feijão estavam a salvo. Agora apenas a água.
A água balança seu corpo pesado, sensualmente. Sensualmente está
a menina ali na beira do lago. Vazia, sensualmente vazia, demoníacamente
vazia. Vazia como o infinito.
Mergulha o rosto em seu reflexo, para sentir sua maciez. A água agora
é escura, compacta, densa. A menina quer voltar, mas já não
pode. A água a puxa docemente, envolvendo-a com seus braços fortes.
Aperta-a com força, a comprime toda. A menina sente gozo neste abraço.
Seu primeiro e verdadeiro abraço. Duro, ciumento, egoísta. A água
não quer que ela vá embora. Quer que seja parte dela. A água
quer guardá-la, acariciá-la, até que ela já não
exista mais, até que ela se integre em seu barro, em seu lodo, em seu
corpo. Até que ela se transforme em água também.