Entrei.
Pisei o soalho enegrecido pelo tempo. Teias de aranha brilhando no tecto, parecendo
labirintos ofuscantes pelos raios de sol infiltrados no espaço.
Tive medo.
Continuei a pisar o soalho que flutuava à medida dos meus passos. Rangiam
as paredes e os cortinados pela ânsia de a conhecer.
Estive em modos de voltar para trás, descer as escadas em caracol, vestir
o sobretudo, pegar na mochila, abrir a porta e vir-me embora. O meu peito batia
forte, sentia as pulsações do coração incharem o
pescoço. Reparei na minha figura no espelho em pó sacudido por
dedos trementes.
Fiquei.
Toquei nos livros, toquei nos móveis, no baú em madeira escura,
toquei na estátua ao canto, no chapéu de palha, nos vestidos,
vi os quadros pendurados, um candeeiro de pé alto sem lâmpada,
vi um gira discos e um disco de vinil na surdez da envelhecida melodia por tocar.
Não a vi.
Abri a primeira gaveta da cómoda. Vazia.
Abri a segunda gaveta da cómoda. Vazia.
Abri a terceira gaveta e quis abrir a quarta. Trancada.
Tentei forçar, sem sucesso. Achei estranho, pois tinhas dito estarem
as cartas numa das gavetas da cómoda. Não me falaste na gaveta
trancada. Onde estará a chave?
Procurei pelos móveis, abrindo as portas, revistando o baú, folheando
livros, revistas literárias, enciclopédias, dicionários
de línguas estrangeiras, fotografias. Vi-te. Reconheci a tua postura.
A chave, onde estará a chave?! Escondeste. Eu sei!
Essa fotografia. Peguei nela novamente. Sentei-me na cadeira de baloiço.
Como eras jovem, como eras bonito, homem feito, adulto, um senhor letrado, o
doutor, o médico, a esperança estampada no perfil. Abri o álbum
de fotografias e outras imagens assolaram, apareceram recordações,
momentos, o preto e o branco, o antigo, o pensamento que não volta nos
gestos alheios. Por fim, gritaste pelas cartas. As cartas. Descobre as cartas
e perdoa-me! Pediste.
Não a vejo, procuro e investigo, quero saber, preciso desesperadamente
de a conhecer para te perdoar, para satisfazer o teu pedido, para poder olhar-te
nos olhos e descobrir a verdade.
Mataste-a não foi?
Ouço o tilintar de uma chave colocada na fechadura da janela fechada.
Muitos anos passaram desde que abriste a janela pela última vez. O vento
consegue trespassar a madeira das portadas pintadas de verde, e até hoje
desdenhadas por todos.
Abri a janela e através da janela vi o jardim mal tratado, flores velhas,
muros destruídos, árvores de folhas caídas, a estátua
do leão com o busto perdido algures por entre as folhagens castanhas
do Outono vindouro. Pensei em ti.
Por instantes fiquei assim, parada no tempo tal como tu estás agora.
Só o grito proferido e silêncio profundo na total solidão.
Basta! Não quero reviver a situação nem descobrir a verdade.
Está à vista de todos, só tu não a vês. Fechei
tudo, a janela, as portadas, o baú, os livros, o álbum. Esqueci
os retratos.
A chave rodou para o soalho e caiu em frente da cómoda. Apanhei-a, quis
voltar a rodar a fechadura, não consegui. Mais uma tentativa e outra,
mais outra, muitas tentativas.
Sentei-me outra vez na cadeira e baloicei o corpo, movimentei a alma.
Imaginei-te de olhos fechados, o gira discos produzir o som da música
e de como seria a sensação de estares aqui, com a minha idade,
de seres como eu e eu ser como tu. Escutando a guitarra portuguesa, conversando
com ela, amando-a, querendo-a, despindo-lhe o vestido de seda, acariciando-lhe
a nuca, humedecendo-lhe os lábios com os teus beijos.
Apercebi-me da minha existência ao baloiçar a cadeira de verga.
Foi numa tarde primaveril, vocês os dois a comemorar a natureza, um amor
infinito, ambos num só corpo, numa só vida, a mesma guitarra tocando,
duas almas vivas, unidas.
Promessas, sonhos, risos, felicidade ao verem o jardim tão lindo, florido,
árvores de fruto, os muros pintados de fresco, as roseiras em flor, as
cores.
Ela está a dançar para ti ao som dos teus dedos tocando as cordas
da guitarra
pela última vez!
Continuo assim, embalada, como se ainda estivesse em seus braços no amamentar
da vida precoce, pequena bebé, pequeno botão de rosa.
Abres a última gaveta da cómoda, como se estivesses a esconder
a vida.
A criança acordara de um sono profundo, devagar abre os olhos. Estava
deitada sobre a cadeira.
Parou o baloiço, o morno do sonho. Choras muito. Lembro-me de chorares
muito.
Paro de baloiçar a cadeira. Abro os olhos e observo a cómoda.
Tenho a chave entre os dedos.
Num impulso, ponho-me de joelhos em frente da cómoda, tal como a lembrança
do teu corpo pesado e cansado.
Rodo a chave, abro a gaveta e vejo as cartas
a guitarra também lá
está, descansando.
Fico a saber da doença, dos infortunados resultados das análises,
dos exames, das dores.
Ela escreve-te do sanatório, sente a tua falta, deseja voltar para ti,
que a deixes regressar.
Tu respondes não ser possível de uma forma muito subtil.
Minha adorada esposa, começas por escrever.
Mais algumas linhas. Tudo está bem. Cá estaremos para te receber.
Anseio por ti.
Terminas. Teu para sempre.
Noutra carta a mesma súplica, a nossa menina. Tenho saudades. Não
sentirei o sofrimento a teu lado.
Continuas a teimar em deixá-la ali, junto dos outros enfermos. És
médico, mas o colega é teu amigo, olhará por ela, tratar-te-á
com carinho e admiração. Teu para sempre.
Leio vezes sem conta. Teu para sempre. Os pedidos, as rezas, as saudades.
Por fim, vacilas, não aguentas mais.
Contratas uma enfermeira para o dia e para a noite. Preparas o quarto de hóspedes.
Não convém estares perto. Ficarás doente, aconselha-te
o amigo.
Regressas às cartas, comunicas com ela através das cartas. Dormes
com ela quando lhe escreves.
Sentes a vida a escapar-lhe quando a enfermeira sai a correr direito ao lavatório
com a arrastadeira ensanguentada. Passou a noite neste desespero, afirma num
pranto.
Vejo-te passar os dedos por entre os nós dos cabelos.
Espreito-a pela frincha da porta. Chama por ti, ouço o teu nome na repetição
da palidez dos olhos encovados.
Assustado, afastas-me, pegas-me pelos braços.
Durante anos não a vês, só lês as palavras tremidas,
a letra sem rumo.
A menina está na primária. Brinca muito, aprende depressa. Está
tudo bem. Teu para sempre.
Outra vez.
Aparece a primeira revolta. Quero vê-la, conhecê-la, sentir-lhe
o cheiro.
Ela responde numa outra carta. Pergunta por mim.
Exclamas não poder, eu estou bem, fui numa excursão escolar. Estou
na segunda classe.
Irrita as palavras, afirma estar presa. Já não tosse, sente-se
bem. Exige a tua presença.
No fundo da gaveta, uma folha brutalmente amarrotada, a tinta borrada. Pedes
perdão
Estavas embriagado. Chegaste a casa dando pela minha falta. A menina? Perguntas.
Fugi de ti para a ver. Aguardei junto do reposteiro. Estava a preparar-se na
casa de banho para me receber. Só sentia o cheiro a rosas e a sua sombra.
Não esquecerei as tuas feições ao entrares furioso no quarto.
Mandaste-me embora, empurraste-me e cai no corredor.
Ela pressentiu o marido inconsciente. Apareceu aflita e deu contigo parado,
de cabelo desalinhado, gravata torta numa camisa tresandando a perfume feminino.
Estava bela. Parecia uma deusa da mitologia da antiga Grécia.
Loira, de cabelos longos apanhados por um gancho prateado contrastando com a
brancura do vestido comprido e das sandálias transparentes.
Descreveste nesta carta o esbofetear a situação com brutalidade.
Durante anos amaste uma desconhecida. Estava doente, morria lentamente.
Trataste-a como uma vulgar cliente no teu consultório caseiro. Não
havia esperança.
A menina era só tua. Dela não havia resto de nada. Uma hóspede
num hotel de serventia.
Mas sempre e para todo o sempre teu marido até que a morte nos separe.
Bateste com a porta e ela nada disse.
Devolveu esta carta amarrotada, sem aceitando o teu perdão do dia seguinte.
Mais cartas lhe escreveste, explicando que não podias mais aguentar a
separação. Todos aqueles anos sofrendo na distância de um
corredor.
Procuraste outra mulher, outros perfumes, procuraste a tua esposa, a tua doce
e pura esposa, muitos beijos, muitas carícias, muito teatro. Rejeitaste
todas as mulheres, declinaste os perfumes, os colares, os convites. Também
tu vivias numa prisão. Estava sempre no pensamento o seu amor e dedicação,
sofria por ela, contentava o olhar em mim, mas não me via.
Todas essas cartas vieram devolvidas, até a enfermeira não entregar
mais nenhuma correspondência.
Em estado de coma ficou durante semanas.
Acordou numa noite de chuva intensa e de trovoada assustadora.
O tempo tinha-a acordado para se lamentar. Sofria e gritava por ti. Chamava
pela menina de dez anos.
O lamento da morte, disse por fim a enfermeira.
Mataste-a, não foi? Perguntei-te na ambiguidade do cinismo e da irónica
situação, de te ver encolhido a um canto, olhando para o vazio.
Estive até aos vinte e um anos num colégio interno, sem nada saber
de ti.
Tal como Amélia, recusei todas as palavras vindas de um estranho.
Tal como a minha mãe, recusei o teu arrependimento de pai e marido.
Guardaste as recordações nesta gaveta, fugindo do mundo e do jardim
circundante dos teus sentimentos.
Fui dar contigo deitado entre cobertores rotos e caixas de papelão a
servirem de colchão num aconchego de fim de tarde numa rua refinada da
cidade. Estavas encolhido pelo frio que se fazia sentir. Pediste-me uma esmola,
uma carcaça, uma sopa.
Parei no passeio. Não pare, menina, é um sem abrigo, é
para a roubar. Vá trabalhar como os outros. É um fantasma citadino.
Na confusão da mulher que não parava de falar, reconheci a tua
voz, mas não reconheci a tua cara. Estás velho, meu pai!
Mastigavas um pedaço de pão sem miolo, agarravas o pão
com ambas as mãos imundas, unhas nojentas. Uma garrafa de vinho a teu
lado, vazia
bebias pela garrafa, sorvendo o líquido inexistente,
fingias engolir o desconforto de quem passava por ti, de quem te igualava com
as paredes envidraçadas da estação de comboios, a ignorância
do desdém. O evitar uma situação conhecida por todos, mas
que ninguém quer ver.
As pessoas exprimem pena pelo coitado do homem, outras tal como esta mulher
mandam-te trabalhar, és um vagabundo, um mal feitor, um parasita da sociedade.
Não te conhecem, não me conhecem, não se apercebem do teu
sofrimento.
Chega um agente da autoridade para te prender. A tal mulher não compreendeu
a minha aproximação, o toque das minhas mãos na tua cara
envelhecida. Pegaste na garrafa para voltares a beber o inconsciente. Olhaste
por fim
Viste a tua filha.
Tocaste-me também, beijaste a palma das minhas mãos. Choraste
outra vez.
A tua sujidade percorreu o meu rosto, o meu pescoço, a minha roupa.
Estávamos os dois de joelhos em cima do papelão estendido, a mirar
as nossas caras, os nossos corpos, os cabelos. Puxaste com carinho os meus cabelos
loiros. Tentaste acalmar as lágrimas que escorregavam sem parar qual
fonte de água.
O polícia algemou os teus pulsos atrás das costas, puxou o teu
corpo para a frente, pediu reforços, a mulher telefonava para o marido,
aflita. Estava em estado de choque, tremia-lhe as mãos, pestanejava muito.
Um roubo vê lá tu, tentou violar a rapariga, obrigou-a a ficar
de joelhos, tentou apertar-lhe o pescoço. Vem buscar-me, não consigo
ficar aqui. Se calhar temos de ir à esquadra testemunhar.
Não consegui chamar por ti, chamar pelo pai, dizer o teu nome esquecido.
Levaram-te num empurrão, não tiverem pena de ti, não te
respeitaram.
Tiveste culpa por ainda me amares como filha.
Após explicações provadas com documentos, o juiz deu-te
liberdade, na condição de ficares a viver num lar, vigiado por
um técnico da assistência social.
Quis muito ter-te comigo, mas a sociedade não deixa. Afirma a justiça
do testemunho da tal mulher, que és um perigo, uma violência para
o consumo social, uma verdadeira obstrução ao bem-estar público.
Tens de estar preso.
Neste sótão não consigo ouvir os teus gritos, tapo os ouvidos,
enlouqueço e choro muito por ti.
Julgo ver um papel rasgado, está dobrado pelo meio, nunca chegaste a
abrir esta carta, ainda tem o selo intacto.
Violo a tua correspondência.
Uma única palavra escrita pela minha mãe.
Perdoo-te.
Ai, meu pai. Meu pai vagabundo, meu pai maltrapilho. Já não me
proteges da tuberculose, já não me consegues proteger do perigo.
Nunca a prendeste, salvaste a Amélia, quiseste a sua lembrança
perto de mim, mesmo à distância de um corredor.
Sai a correr, não me lembrei da janela, da gaveta aberta, da guitarra
guardada e esquecida.
Fui ter contigo, escancarei as grades da tua prisão, beijei-te como não
te tinha beijado antes, abracei-te, chamei por ti. Pai. Pai. Meu querido pai.
Estava a dormir, parecia feliz. Já lhe reconhecia as feições.
Perdoo-te, pai. Eu perdoo-te, meu pai.
Chegou o técnico, chegaram as empregadas, veio ao meu encontro a responsável
pelo lar da Santa Casa da Misericórdia. Aproximaram-se os idosos.
Num tombo repentino, separaram-me de ti.
Tinhas falecido, chamando pela Amélia. A menina está bem. Teu
para sempre.
Perdoas-me?
Sim, pai, eu perdoo-te.
Agora vou ter com a tua mãe, vamos ao sótão, eu vou abrir
a janela e enquanto eu toco guitarra, a tua mãe irá dançar
e juntos vamos ver-te a brincar no jardim.