(a Stanley Grauman Weinbaum)
Fazia frio. Em volta da fogueira contávamos os casos mais pitorescos
dos pioneiros em Marte. Como o poeta que fazia verso a Fobos e Deimos como se
à Lua, ou o astrólogo que, na estação de Zecão,
lia a coluna de astrologia dos jornais da Terra toda manhã e dava jeito
de verificar se seu horóscopo estava bom. Eristeu, da estação
avançada de Europa, lua de Júpiter, que gostava muito de contar
as peculiaridades desse satélite, contava, agora, como seu avô
enganou o Diabo.
- Já há muitos anos nesse posto avançado de Europa, meu
avô, Joel Barroso, sentia na pele e na alma a crise que se alastrava em
todos os setores. Num dia, deprimido, pediu a ajuda do Diabo. O Diabo apareceu
como um visitante noturno soturno e misterioso. Combinaram que o Diabo voltaria
pra o buscar em 30 anos terráqueos. Trêmulo ante tão espantosa
figura Joel incluiu no trato que o Diabo só poderia aparecer a ele mais
uma vez em relação ao trato. Então, uns dias depois, descobriu
uma nave perdida, a famosa nave que caiu quando transportava material à
colonização de Io. Sim, ela estaria na cercania, pois fora se
abastecer de combustível nesse posto avançado. Ali estavam muitas
máquinas-gene . Bastaria alguém
que tivesse o necessário conhecimento pra criar ali uma cidade, e ele
tinha. Criou uma cidade e foi seu imperador. Passados os trinta anos se aproximava
a data da vinda do Diabo. Joel já tinha se esquecido do trato mas de
súbito se lembrou ao pegar uns livros de folclore. Ficou apreensivo.
Trinta anos! Parecia um tempo tão longo que nunca chegaria. Mil coisas
lhe passaram na cabeça. Ora se resignava, ora se inconformava. Então
se lembrou da famosa lenda do marquês de Vilhena, aquele que enganou o
Diabo lhe entregando sua sombra. Á!, se pudesse entregar sua sombra ao
Diabo, o fazendo crer que levava o dono da sombra. Então teve uma ideia
luminosa. Foi ao centro tecnológico manifestar seu lado artístico.
Quando o Diabo apareceu, no dia marcado, viu Joel sair, sem delonga, pela porta
aberta, caminhado apressado, dizendo: Trato é trato. Não precisas
me tocar. Vamos. Irei na frente! E foi caminhado na noite escura. Lá
dentro, saindo donde estava escondido, Joel rolava no chão de rir ao
ver que o filme holográfico que gravara atuando como ator serviu perfeitamente
pra enganar o Diabo.
Prosa vai, prosa vem, a conversa ganhou ar polêmico quando Mané
Silveira, administrador de posto em Io, satélite de Júpiter, expressou
uma convicção. Mané, homem prático, o típico
empresário e administrador, dessa mentalidade tão predominante
na humanidade e responsável pela índole tão mecanicista,
pragmática e pão-duro que impera há muito. Disse que a
seu serviço não serve o homem de imaginação.
- O homem sem imaginação é o melhor trabalhador porque
faz do trabalho o centro da vida e não um mero meio de subsistência.
Sente prazer em seu ofício e se adapta tão bem que entra em crise
se tem de parar. Então sua vida cai num vazio profundo e custa a encontrar
a saída. Em nosso ramo não há espaço pra esse inútil
poeta e demais sonhadores. Penso, até, que deveriam ser extintos do seio
da humanidade.
Manifestei logo minha discordância com essas ideias. Sem querer
entrar em muita polêmica nem querer converter alguém a meu ponto
de vista.
- Senhor Mané Silveira. Antes de tomar posse da administração
dos postos de Io detinhas o mesmo cargo em Marte. Soube que, e é notório,
o posto avançado de Mare Chronium, em Marte, constituiu um insolúvel
problema em tuas mãos. Essa região marciana sempre foi temida
por todos porque é ali que está o vale dos Sonhos, o habitá
do terrível predador que é a espécie da besta do sonho.
Animal ou vegetal? Não se sabe. É um caso pros naturalistas dum
futuro próximo se ocuparem. O caso é que todos os que ocuparam
o cargo de sentinela avançada morreram vítimas da terrível
besta dos sonhos (que seria melhor dizer besta dos devaneios). Não
se pôde exterminar tal criatura porque é terminantemente proibido
pelas leis ecológicas. Então tu, seja por isso ou não,
aceitaste o cargo de administrador em Io. E sabes por que tens de engolir esse
tão grande fracasso em Marte enquanto teu arquirrival Gesuíno
Mendonça lá deixou uma sentinela que está ali, e muito
bem, há vários anos? É por causa de tua rígida e
inflexível doutrina, o dogma que expuseste há poucos momentos.
Um instante de suspense. Com certeza todos estavam curiosos esperando a explicação
completa de minha afirmação. Mané me fitou num misto de
assombro e curiosidade. Se revelei algum fracasso seu a curiosidade de saber
algo que ignorava e lhe dizia respeito era mais forte que a frustração
por se ver contrariado e vendo a nu um fracasso que já havia esquecido.
Mantive um tanto de silêncio fitando a todos, um a um, na certeza sádica
de que ansiavam saber qual era minha prova de que o dogma de Mané era
falho. Contei, então:
Logo que Gesuíno assumiu o cargo nomeou pra sentinela de posto avançado
em Mare Chronium um poeta sonhador que não dava muito certo noutros cargos,
Mauro Anjos. Sendo poeta e sonhador Mauro não se aborreceria naquela
erma solidão. Ao contrário, até teria tempo de se dedicar
a seu talento. O serviço sendo pouco daria a ele a contemplação
desejada e a tranquilidade total, de modo que seria um bom negócio
a ambas as partes.
Durante algum tempo tive pena do poeta: Pensei que fosse morrer logo. Pra quem
não sabe, a besta dos sonhos é um fantástico predador que
cria uma realidade virtual, não sei se holográfica ou alucinante.
O caso é que a criatura capta a memória de sua presa e lhe dá
uma visão de seus desejos mais profundos. Eu mesmo vi ali, naquele ermo
quase deserto, uma praia paradisíaca onde estive na Terra e me chamando
à água a bela Míriam, a paixão que tive quando a
conheci em Vitória. Tomamos banho juntos em Guarapari e lá vi
o quanto era encantadora. Me veio à memória a estrofe que a ela
dediquei em Guarapari, parodiando o antigo Vinícius de Moraes:
Moça do corpo dourado
do Sol de Vitória
teu balançar dá mais que uma estória
ficou gravado em minha memória
Míriam me apareceu em Marte tal qual era naquela inesquecível
ocasião em que me pediu pra tirar foto em Vitória, mania que tinha.
Como gostava de tirar foto! Até teve uma onda que deslocou o sutiã
de seu biquíni, parecido com quando estávamos em Guarapari e pude
ver seu seio. E eu abobado, mesmo perplexo com o absurdo do fato, fui me aproximando
dela. Não fosse arrastado por Mauro sucumbiria enrolado pelos negros
tentáculos da besta do sonho.
Estive ali, entregando a costumeira encomenda de erva-mate a Mauro, que é
um grande tomador de tereré. Resolvi ficar até a chegada da próxima
nave. Queria conhecer Mauro, saber como estava imune à besta. E o que
descobri, pasmai!, parece mais fantástico que a própria besta:
Mauro é imune porque tem muita imaginação! É incrível,
mas o que Mauro faz é jogar com a besta. Ele devaneia, vive sonhando
acordado, e isso contrabalança a sugestão da besta. A criatividade
de Mauro é um antídoto, uma proteção que anula a
ilusão gerada pela besta ou, antes, ele joga, eu diria, dança
com ela, porque Mauro não quer sair de seu rincão, por nada deste
ou daquele mundo. E o tereré, me explicou, psicotônico como é,
é grande ajuda pra inspirar a mente e pelejar à altura contra
a besta do sonho. Parece que a besta evoluiu como predadora de animal irracional
e o homem imaginativo lhe escapa à especificação: É
algo que não está em seu manual de instrução.
Olhei ironicamente a Mané Silveira, dizendo:
- O homem imaginativo é um ser superior. O homem vulgar segue o padrão
dos animais: Nada mais é que uma formiga do intelecto
Um dos presentes disse:
- É impossível exterminar a besta do sonho porque vive embaixo
da terra e lança tentáculo por furos que faz no chão. Parece
ser mais prolífica que capim tiririca.
Impossível descrever a expressão no rosto de Mané Silveira,
calado e pensativo com os olhos fixos em mim. Parece que ganhei um inimigo.