É noite de sexta-feira. No meio de uma aula de português, dois amigos,
alunos da UNB combinam um racha, que seria realizado em uma ponte modelo, feita
com muito esmero e amor à política. A ponte JK, que fora construída
pelo Governador Joaquim Roriz, um Governo preocupado com os problemas de locomoção
dos pobres moradores do lago sul. Para construir a ponte em questão, o
Governo gastou a bagatela de 170.000,000,00 que poderia ter sido usados para educar
melhor os filhos dos pobres, para que os mesmos tivessem a oportunidade de cursar
uma faculdade do mesmo nível de uma UNB, ou mesmo na própria, quem
sabe com a expansão da faculdade para as cidades satélites, a exemplo
de Planaltina, que já tem sua unidade em funcionamento.
Dois jovens de classe alta, filhos da elite de Brasília, ambos haviam ganhado
dos seus pais, o último modelo do carro dos seus sonhos. Empolgados, por
terem passado no vestibular, coisa que não merecia tanto mérito
assim, por terem sidos durante toda infância alunos do colégio mais
caro da cidade. Os jovens queriam comemorar em dose dupla a realização
da conquista, sua e dos seus pais. Era comum no início do curso saírem
em grupo para beber, e na volta para casa faziam desafios, pra ver quem vencia
a distância da ponte em menos tempo.
Várias vezes, durante essas noites de farra adolescente, eram, não
raro surpreendidos pela polícia, que não poderia fazer nada além
de uma pequena repreensão verbal, no máximo uma ameaça de
levá-los para se explicar ao delegado de plantão, que ao saber das
suas origens nobres não poderia causar-lhes nenhum constrangimento.
Nessa noite, em especial; a farra demorou mais do que o de costume. Foram à
boates, e depois de muito regalo, resolveram pôr em prática o racha.
Ainda a caminho da ponte, o local do delito premeditado, já passaram do
limite de velocidade permitida pelos pardais, os eternos servidores públicos
do DETRAN. Que importa multa para quem pode pagar? Há exemplos de filhos
de papai que usam um carro por um ou dois anos depois dispensam em qualquer lugar,
por não compensar o pagamento das multas; ou ainda outro caso que é
mais comum, a corrupção de algum funcionário que aceita correr
o risco de perder seu bom emprego em troca de algum dinheiro fácil.
Enquanto isso:
Já são cinco horas da manhã, pela mesma estrada, trilhando
um outro caminho, a caminho de casa, vai um homem comum, com a consciência
limpa, com a alegria de quem cumprira bem o seu papel, e com uma vontade incontrolável
de chegar em casa para o descanso merecido. Não tem em mente nenhuma preocupação,
além do desejo de em casa chegar para ver os filhos. Não acredita
em perigos de natureza trágica a uma hora dessas, quando toda cidade dorme,
só ele e alguns servidores da noite estão voltando para suas casas,
estes são os garçons, músicos, os motoboy's entregadores
de pizzas como ele. As pessoas "normais" que têm o direito de
escolha, ou que tiveram outra oportunidade na vida, não trocariam a noite
pelo dia para descansar. A não ser uma minoria alienada que mesmo tendo
o privilégio de escolher não dão o devido valor à
vida que têm, e vão além, usurpam as migalhas que sobram para
esses excluídos do sistema capitalista onde cada um vale o que possui.
Os carros acelerados rumam, à direção da ponte. São
dois carros envenenados com seus motores adulterados, levando seus pilotos que
não estão em seu estado normal de consciência. Ambos embriagados;
além do cansaço, do sono perdido a drenalina da competição
os cegam ainda mais, não percebem o perigo que correm e passam a exigir
o máximo que os seus carros podem lhes oferecer, na sua robustez de máquina
limitada. Não sentem que estão à mais de 200 km por h. Os
amigos que lhes acompanham nessa insana diversão, também não
percebem nem por um segundo quão fugaz são suas vidas nesse instante.
Quando como que no piscar de olhos, se deparam com uma moto voando aos pedaços
sobre seus olhos embaçado com o véu da irresponsabilidade, um dos
carros também capota e se arrasta sobre o parapeito da ponte. Apenas um
consegue sobreviver ao desastre incomum. Voltando depois de uma brusca frenagem
os sobreviventes vislumbram um cenário inimaginável; corpos destroçados
pela fúria da velocidade da embriagues, e muito sangue inocente sobre o
asfalto novo que ainda não conhecia o gosto da desilusão existencial;
que não fora feito para este fim, receber em seus braços os filhos
da ignorância racional. Morreram na batida além do motoqueiro anônimo
mais três filhos de pais que não pediram a Deus tal sorte para os
seus, nem sequer imaginavam o que eles praticavam às escondidas. Ninguém
vai repor as vidas dos mortos, nem tão pouco será indenizada a família
do cidadão que voltava do seu trabalho honesto.
Os mortos ricos serão lamentados, afinal de contas, são seres humanos
com os mesmos sentimentos, iguais aos da família do motoboy; com uma diferença,
não deixaram uma família órfã em sentido financeiro,
filhos que precisariam de educação para que pudessem ter uma sorte
diferente da que teve o Pai. Quanto aos que ficaram vivos, por terem sido cúmplices
de tão bárbaro crime, serão enquadrados nas páginas
da lei?
Isso não é provável, pois a exemplo de impunidade temos o
caso dos garis que enquanto limpavam as ruas para que os nobres pudessem circular
em segurança, pudessem ir e vir sem risco de serem acometidos por algum
tipo de doença infecto-contagiosa, foram atropelados por jovens delinquentes,
que brincavam de piloto de fórmula I, e depois de julgados pela justiça
imparcial dos homens, foram taxados por multa social; tiveram que doar por alguns
meses algumas sextas básicas para alguma família desamparada como
a do motoboy que foi assassinado na ponte JK.
(Brasília, 2006)