A Garganta da Serpente
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A Ostra

(Caio Viana)

Aquele era um dia comum para os dois amigos. Caminhavam pelas diferentes calçadas de um bairro tradicional e mais pareciam irmãos. Os desconhecidos que os viam assim julgavam, e várias vezes eles tinham de ouvir: "Como são iguais! Mais parecem irmãos...", o que muito os orgulhava. Adoravam a comparação. Mas neste instante simples, eles só caminhavam sem destino numa tarde de céu aberto e sol radiantes.

Iam conversando sobre as trivialidades da vida, como se para eles houvesse algo que não fosse trivial. Um bon vivant cada um era, e raramente se viam envoltos por atribulações.

Num segundo súbito, sentiram fome. Não aquela fome insuportável, e sim uma necessidade psicológica em comer. Como não carregavam preocupações, não viram qualquer problema em tomar a atitude que estava lhes espreitando. Alcançando uma parada de ônibus, daquelas feitas por dois pilares metálicos e uma cobertura que nada protege, avistaram um grupo de três meninas jovens, quase nas mesmas idades que os amigos. Vestiam-se bem e demonstravam sem qualquer vergonha serem abastadas. Sorriam e conversavam achando-se as únicas pessoas presentes.

Os amigos se aproximaram e se colocando à frente das três, fazendo-as calar, pediram em uníssono: "Nos arranjem algumas moedas para comprarmos alguma comida."

Com o estranhamento natural dos seres viventes e desconfiados do nosso mundo atual, as três jovens os olharam de cima a baixo, cada uma com seu pensamento próprio, mas garantidamente num pensamento em comum: de que estavam arrumados demais e não eram mendigos para merecerem as moedas que detinham.

"Vocês nem mendigos são! Querem é os nossos dinheiros de graça!" - disse uma delas, e virou o rosto, ignorando-os. As outras seguiram a amiga.

Por outro lado, os dois puseram-se a pensar, e como sempre, um adivinhando o pensamento do outro. De alguma forma, supunham que mesmo que fossem mendigos, elas não iriam despendiar sua atenção a eles. Mas, eis que uma voz fraca e rouca se ergue no ar: "Tomem aqui, meninos." Ao se voltarem na direção do som, percebem alguém que antes nem tinham notado. Uma senhora, bem velhinha, magra e de pele enrugada e morena, cabelos brancos presos por um lenço em tons de rosa, com dentes faltantes e olhos perdidos, roupas sujas e esfarrapadas, estende a mão trêmula para um deles. Ela está sentada no chão, recostada no muro de um prédio que beira a parada de ônibus. À sua frente uma caixa de isopor, e sobre a caixa, uma faca e algumas ostras. Ainda sem compreender o que se passa, o jovem abre sua mão, e num movimento da velha, o tilintar de moedas se faz ouvir.

Os rapazes se entreolham, enquanto as jovens já esqueceram o que se passa ao seu redor. Sorridentes, fazem as cortesias de agradecimento, e vendo um último e único sorriso da velhinha, retomam a caminhada pelas calçadas. Agora possuem um destino.

Caminham mais alguns passos, o bastante para não mais verem a parada de ônibus e sua simpática residente. Um deles estanca. Olhando para o outro, passa através de seus olhos tudo o que lhes vêm a mente. Os sorrisos somem.

"Acabou de perceber o que ocorreu?" - diz um, revelando indignação.

"Agora entendi." - reflete o outro.

"Como isso é possível?" - indigna-se mais ainda. Até que o outro conclui: "Porra! Deus é foda!"

E decidiram não retornar. Não chegaram a conhecer o porquê de tal decisão, mas seguiram seu caminho e fizeram bom uso do dinheiro. Mas até hoje, quando contam essa pequena narrativa, demonstram a mesma indignação que tiveram naquele dia.

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