Aquele era um dia comum para os dois amigos. Caminhavam pelas diferentes calçadas
de um bairro tradicional e mais pareciam irmãos. Os desconhecidos que
os viam assim julgavam, e várias vezes eles tinham de ouvir: "Como
são iguais! Mais parecem irmãos...", o que muito os orgulhava.
Adoravam a comparação. Mas neste instante simples, eles só
caminhavam sem destino numa tarde de céu aberto e sol radiantes.
Iam conversando sobre as trivialidades da vida, como se para eles houvesse algo
que não fosse trivial. Um bon vivant cada um era, e raramente
se viam envoltos por atribulações.
Num segundo súbito, sentiram fome. Não aquela fome insuportável,
e sim uma necessidade psicológica em comer. Como não carregavam
preocupações, não viram qualquer problema em tomar a atitude
que estava lhes espreitando. Alcançando uma parada de ônibus, daquelas
feitas por dois pilares metálicos e uma cobertura que nada protege, avistaram
um grupo de três meninas jovens, quase nas mesmas idades que os amigos.
Vestiam-se bem e demonstravam sem qualquer vergonha serem abastadas. Sorriam
e conversavam achando-se as únicas pessoas presentes.
Os amigos se aproximaram e se colocando à frente das três, fazendo-as
calar, pediram em uníssono: "Nos arranjem algumas moedas para comprarmos
alguma comida."
Com o estranhamento natural dos seres viventes e desconfiados do nosso mundo
atual, as três jovens os olharam de cima a baixo, cada uma com seu pensamento
próprio, mas garantidamente num pensamento em comum: de que estavam arrumados
demais e não eram mendigos para merecerem as moedas que detinham.
"Vocês nem mendigos são! Querem é os nossos dinheiros
de graça!" - disse uma delas, e virou o rosto, ignorando-os. As
outras seguiram a amiga.
Por outro lado, os dois puseram-se a pensar, e como sempre, um adivinhando o
pensamento do outro. De alguma forma, supunham que mesmo que fossem mendigos,
elas não iriam despendiar sua atenção a eles. Mas, eis
que uma voz fraca e rouca se ergue no ar: "Tomem aqui, meninos." Ao
se voltarem na direção do som, percebem alguém que antes
nem tinham notado. Uma senhora, bem velhinha, magra e de pele enrugada e morena,
cabelos brancos presos por um lenço em tons de rosa, com dentes faltantes
e olhos perdidos, roupas sujas e esfarrapadas, estende a mão trêmula
para um deles. Ela está sentada no chão, recostada no muro de
um prédio que beira a parada de ônibus. À sua frente uma
caixa de isopor, e sobre a caixa, uma faca e algumas ostras. Ainda sem compreender
o que se passa, o jovem abre sua mão, e num movimento da velha, o tilintar
de moedas se faz ouvir.
Os rapazes se entreolham, enquanto as jovens já esqueceram o que se passa
ao seu redor. Sorridentes, fazem as cortesias de agradecimento, e vendo um último
e único sorriso da velhinha, retomam a caminhada pelas calçadas.
Agora possuem um destino.
Caminham mais alguns passos, o bastante para não mais verem a parada
de ônibus e sua simpática residente. Um deles estanca. Olhando
para o outro, passa através de seus olhos tudo o que lhes vêm a
mente. Os sorrisos somem.
"Acabou de perceber o que ocorreu?" - diz um, revelando indignação.
"Agora entendi." - reflete o outro.
"Como isso é possível?" - indigna-se mais ainda. Até
que o outro conclui: "Porra! Deus é foda!"
E decidiram não retornar. Não chegaram a conhecer o porquê
de tal decisão, mas seguiram seu caminho e fizeram bom uso do dinheiro.
Mas até hoje, quando contam essa pequena narrativa, demonstram a mesma
indignação que tiveram naquele dia.