Acordo e fico sabendo que hoje, sete de maio, é Dia do Silêncio.
Estou absolutamente sozinha, mas não há silêncio interior.
Dentro de meu self, alaridos, relembrares, cantares e... até gemidos,
arfantes gemidos de paixão.
Quando nos encontramos, descobrimos muitas coisas em comum: o gosto por fotografia,
viagens, filmagens, música, praia, ar livre, estradas...
Vou à sala e ligo a TV. Na Net, passa um filme "cult": "O
Último Tango em Paris", que na Ditadura, era proibido no Brasil. O livro,
deixaram em cima de minha mesa, na Gazeta Comercial onde eu trabalhava, capa
dura, páginas em papel ruim, edição clandestina, como muitos
que recebi, então.
Li-o escondidamente, pois, mocinha, temia que papai me surpreendesse lendo livro
assim "forte". Quando nos casamos, vim morar em Belo Horizonte onde
você, engenheiro civil, trabalhava nas passarelas e viadutos da "Via
expressa".
A abertura cultural começava. Você levou-me para ver os filmes
antes proibidos. Entre eles, O Império dos Sentidos e O Último
Tango em Paris. Claro, o primeiro, oriental, mostrava situações
inusitadas. Lembro de ficar sem graça, ao sairmos, pois a sala de apresentação
era freqüentada por homens, na maioria. Como se os filmes fossem pornográficos,
não eróticos.
Belo filme, "O Último Tango em Paris", que mostra a cru, a
condição humana perante a condição sexual, suas
repressões e liberações. Marlon Brando está magistral
no personagem amaro, apaixonado e apaixonante. Maria Schneider, repete, num
dado momento: "É como brincar de adulto sendo uma criança".
O amor não é isso? Nosso lado lúdico, esforçando-se
para alcançar as esperadas respostas adultas...
E quando o tudo finda, entre lágrimas, ela nega tudo e se nega. A respeito
do amante, exclama: "Eu não o conheço", "Eu não
sei quem ele é", "Ele é louco" e "Não
sei o nome dele".
Os seres humanos vivem essas angústias permanentes. O Outro quer, de
si, saber tudo. E todos temos uma bagagem dentro da alma, do coração,
segredos... Não sabem totalmente como somos. Não sabemos totalmente
do outro... Mas nós, após vinte-e-seis anos em comum, sabíamos
um bocado um do outro.
Digo a meus pacientes para se aquietarem. Deixarem fluir o relacionamento. Se
todos apenas usufruíssemos a verdadeira alegria cotidiana de estar-com,
de estar-para, sem cobrar a dissecação da personalidade e da história
do companheiro, seríamos mais felizes...
Você tinha essa sabedoria. Casada de pouco, pois namoramos, noivamos e
casamos em três meses, eu quis, como se oferecesse um presente, contar
a você sobre meus simples amores antigos. Você me abraçou
e me silenciou: Chiu... nada que ficou para trás nos importa. E assim
foi. Construímos nossa própria história, sem ciúmes,
sem canseiras, sem cobranças... sabedoria pura...
Venho escrever. Na sala, o tema do filme. Meu coração se aperta,
confrange-me. Nas nossas inúmeras viagens, você sempre a colocava
para tocar... Linda...
Volto à sala e desligo a Tv. O silêncio se reinstala no espaço.
Dentro de mim, porém, sua voz. Lembro de quando entramos no mar para
fazer amor. Quando caminhávamos no parque das Mangabeiras aqui em Belo
Horizonte e você se encantava quando eu imitava os micos e os chamava
para lhes dar o pão que levávamos de casa. Homem sério,
você se desmanchava de rir com minhas gaiatices, mandava-me imitar o andar
das patinhas em Acuruí. Eu as seguia para desenhar e fotografar, enquanto
você pescava os seus pacus... O vôo louco das libélulas fogosas...
Com quem vou rir agora?
Com quem vou falar sobre nebulosas, beija-flores, sobre o canto das pedras?
Quem vai buscar corujas para minha coleção? Quem vai me mostrar
a trajetória das borboletas?
Quando eu estiver insone, quem estará na sala, vendo um filme de fundo
domar? Silêncio absoluto...
Onde mais vou ouvir seus murmúrios?
Ah, o silêncio se faz mais-que-absoluto e penso que você está
tirando um cochilo dentro de mim... É aí que você vive agora.
Você e sua história, você e nossa história... Como
disse um personagem "especial" em um filme, (... ) "Você
vive dentro do coração. É um lugar bem grande para se viver"...
Quando trouxeram seus pertences, depois do acidente, em sua agenda, na primeira
página, encontrei um amarelado papel pautado e nele, manuscrita, uma
de minhas poesias de amor. Cheirava levemente a gasolina...
E foi assim que eu tive certeza de que eu também ainda estava dentro
de seu seu coração, esse lugar grande demais para se viver, onde
podemos ser espaçosos, sermos nós mesmos e fazer todos os rumores
necessários, cantarmos todas as canção, dizermos todos
os versos e sobretudo, falamos de nosso amor imorredouro...
Clevane
N: Tenho de parar de escrever, porque é impossível enxergar sob
as cortinas de cristal líquido que toldam meus olhos...
Até um dia...
(07/05/2006)
Último Tango em Paris
Last Tango in Paris
Direção: Bernardo Bertolucci
Duração: 129 minutos
Ano: 1972
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